Jorge Mortean *
A atual crise Síria é fonte de muitas informações – a maioria delas, imprecisa. Os meios que as propagam priorizam muito mais relatos dos fatos do que uma explicação dos reais motivos dessa crise, e da prévia situação sociopolítica em que se encontrava o país, antes do início dessa “convulsão”. Portanto, valem algumas explicações, a fim de desmistificar o conflito.
As diferentes religiões e culturas que compõem o mosaico social sírio são fatores importantes nesta crise?
Nunca houve (e continua não havendo) nenhum problema étnico-religioso no país. Há séculos cristãos, muçulmanos, druzos e judeus convivem pacificamente, lado a lado, na Síria. Lembrem-se, também, que desculpas étnico-religiosas estão ligadas geralmente a conflitos ocidentais modernos, pelo choque cultural da colonização e expansão da globalização, e que a nossa visão (ocidental) para com o Oriente Médio é bem preconceituosa.
Até onde o sistema ditatorial do governo sírio, no poder (há décadas), é responsável pelos conflitos civis no país?
Tampouco houve (e continua não havendo) um ambiente político democrático. No entanto, o que se viu na Síria – no conjunto dos movimentos sociais proclamados como “Primavera Árabe” – foi tão somente uma reivindicação por melhorias sociais, e não a deposição do governante. Diferentemente de seus comparsas regionais, o ditador sírio, dentro das suas limitações, até que garantia uma ampla liberdade individual ao seu povo (por exemplo, nunca vi outro país, com exceção do Líbano, que promovesse anualmente um festival de rock com bandas descendo a lenha explicitamente no governo, sem que ninguém fosse preso ou torturado), bem como seus índices sociais sempre estiveram no topo quando comparados com o desempenho dos vizinhos árabes.
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Os sírios, portanto, não saíram às ruas querendo a cabeça do Assad? Não. Quem saiu às ruas, então? Nem 1% da população. E esse 1% da população é a mesma parcela que está tocando o terror no país? Não, esse 1% de manifestantes está em casa, apavorados com o outro 1% de radicais islâmicos financiados pela Arábia Saudita e pelos Estados Unidos (Obama paz-e-amor!), cuja finalidade (pois eles não têm nenhum objetivo concreto) é tão somente arrancar a cabeça do Assad. Uma vez o presidente fora, a Síria se tornará uma democracia? Não, podem ter certeza que não. Caso o Assad seja deposto, a situação política poderá ficar pior.
Se a ditadura síria é reprovável, por que um sistema democrático – nos moldes ocidentais – não a substituiria adequadamente?
A História nos prova que um ambiente político democrático tem que ser construído com base na vontade e no apoio popular, não por goela abaixo, muito menos por imposição estrangeira. A Turquia, hoje tida como “modelo de democracia” para o resto daquela região, ainda sofre seus traumas após ter promovido um genocídio étnico, quando aproximadamente 1,5 milhão de armênios foram exterminados entre 1913 e 1919; ter passado, desde a fundação da república moderna turca em 1923, por sete regimes militares; ter apagado sua História escrita após conversão do alfabeto perso-arábico ao latino; e pela falha (para não dizer nula) inclusão dos curdos na sua sociedade, rendendo rusgas, até os dias atuais, à própria integridade territorial do país.
O Irã, apesar de todas as liberdades (menos na política) e prosperidade econômica que havia sob o secular Xá Reza Pahlevi, promoveu uma revolução, em 1979, para derrubá-lo e enfim instaurar uma democracia, mas acabou num regime dez mil vezes pior, nada democrático nem laico, que se amarga já há 34 anos: um verdadeiro elefante branco no meio da sala.
Então, qual é o jogo político que esta crise revela?
Não adianta justificarem o problema sírio como um mero conflito étnico-religioso com vistas à democracia, pois não é nada disso. O que se vê na Síria é uma tentativa, a todo custo, de tirar à força o único governo antiimperialista do mundo árabe. E mesmo que o Assad apoie abertamente o regime ditatorial iraniano – igualmente antiimperialista –, isso não é desculpa para que o povo sírio pague o pato. Seria como se os Estados Unidos e a Europa financiassem e armassem grupos opositores brasileiros, de cunho religioso, para tocarem o terror pelo nosso país, visando derrubar o nosso governo, apenas por ser aliado ideológico de Cuba e Venezuela. Não teria o menor cabimento, certo? No entanto é isso que está se passando na Síria – e que a mídia internacional não quer que você saiba. Mas como eu sou um dedo duro, estou lhes contando aqui, agora.
Nada justifica a falta de democracia, de liberdade, do livre arbítrio e poder de escolha. Mas nada, tampouco, justifica o derrame de sangue, a ameaça à soberania nacional, a instabilidade regional e o radicalismo religioso.
* É geógrafo, bacharel pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Estudos Regionais do Oriente Médio pela Escola de Relações Internacionais do Ministério de Relações Exteriores do Irã, em Teerã. Pesquisador das relações diplomáticas entre a América Latina e o Oriente Médio, é doutorando em Geografia Política, também pela USP. E-mail: naetrom@gmail.com
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