Lúcio Lambranho, enviado especial*
Manágua (Nicarágua) – O Brasil ajudou a evitar uma invasão de tropas norte-americanas à Nicaragua na década de 1980, durante a guerra entre os sandinistas e os contrarevolucionários. No centro da participação brasileira, esteve o então presidente José Sarney, empossado no Palácio do Planalto em 1985 e hoje no comando do Senado.
A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) chegou ao poder em 1979 depois de uma vitoriosa revolução popular contra o ditador Anastásio Somoza, herdeiro de uma dinastia de ditadores que governou a Nicarágua durante 45 anos. A intervenção militar era iminente entre 1980 e 1986. Os Estados Unidos patrocinavam os Contra, que naquele momento perdiam o conflito para o recém criado Exército Sandinista.
Os fatos que comprovam a influência direta do Brasil no conflito armado, nesta terceira reportagem sobre os 30 anos da Revolução Sandinista, foram revelados com exclusividade ao Congresso em Foco por Milton Rondó Filho, atual coordenador-geral de Ações Internacionais de Combate à Fome (CGFome) no Ministério das Relações Exteriores. Em 1986, aos 26 anos, Rondó foi encarregado de negócios na Embaixada do Brasil na Nicarágua.
Rondó trabalhou em outros países e voltou em 1994 à Nicarágua para participar da segunda Conferência de Democracias Novas e Restauradas da Organizações das Nações Unidas (ONU). O bispo Dom Mauro Morelli, então presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e de Combate à Fome (Cosea), criado em 1993 pelo governo Itamar Franco , e o ex-presidente Sarney também participaram da reunião.
O diplomata brasileiro conta que durante um almoço na casa do embaixador brasileiro em Manágua, Genaro Mucciolo, o ex-presidente José Sarney disse aos presentes que graças ao Brasil “não se tinha escrito mais uma história sangrenta na América Latina”. O convite para o evento, dizia Sarney, era um tanto inusitado para ele, mas entendeu como uma retribuição dos sandinistas ao esforço brasileiro para conter a invasão e por ter usado a diplomacia do Itamaraty para contribuir com a pacificação do país em 1990.
Neste momento da conversa, relembra Rondó, a embaixatriz brasileira, Magdalena Granizo, questiona Sarney se isso não era apenas uma retórica dos sandinistas. Sarney então garante aos convidados que a invasão ia de fato acontecer e que o então vice-presidente norte-americano George Bush ligou duas vezes para ele para falar sobre o assunto e tentar saber qual seria a reação do Brasil caso os Estados Unidos invadissem a Nicarágua.
“Além disso, nesta época existia um empréstimo de US$ 1,5 milhão para o Brasil no Banco Mundial que não saía do papel. Sarney, então, disse que foi ao Banco Mundial em Washington e perguntou o que estava acontecendo. Lá lhe disseram que o problema era com os Estados Unidos, pois eles não entendiam a nossa posição sobre a guerra na Nicarágua”, conta Rondó.
Com essa informação, o então presidente brasileiro foi conversar com o secretário de Estado do governo Ronald Regan, George Schultz. “Numa cena quase de cinema, Schultz abre um envelope na frente de Sarney e mostra um foto dos meninos brasileiros que iam colher café na Nicarágua para ajudar os sandinistas”, relembra o coordenador-geral do CGFome.
Em resposta a Schultz, o então presidente disse que naquele momento o Brasil era um país democrático e que não poderia impedir que os brasileiros saíssem do país se não fossem fazer coisa ilegais no exterior. “Se não houve a invasão da Nicarágua, foi, em grande parte, pelo esforço brasileiro, pois a possibilidade de intervenção militar dos Estados Unidos era iminente. Essas consultas a Sarney aconteceram até 1986, quando havia o risco da invasão, porque, depois disso, o presidente Regan perdeu a maioria no Congresso norte-americano e não teve apoio para concretizar o combate direto aos sandinistas”, explica Rondó.
O embaixador Genaro Mucciolo e a mulher dele morreram em 1995 em um acidente aéreo em El Salvador.
Grupo de Contadora e Grupo do Rio
Por meio da assessoria de imprensa, o presidente do Senado forneceu ao Congresso em Foco outros detalhes sobre a atuação do Brasil no conflito entre o governo sandinista da Nicarágua e os Estados Unidos do presidente Ronald Reagan. Sarney lembra que participou de uma reunião na Ilha de Contadora, no Panamá, com os então presidentes da Argentina, Raul Alfonsín, e do Uruguai, Julio Maria Sanguinetti.
Os três tentavam mediar uma solução pacífica para os conflitos centro-americanos. Na época, havia também a guerrilha de El Salvador. A reunião aconteceu por iniciativa do Brasil, diz Sarney, e os presidentes sul-americanos decidiram tomar uma posição conjunta. Em nome do trio, Alfonsin telefonou para o vice dos EUA, George Bush, e comunicou que Brasil, Argentina e Uruguai eram contra uma invasão da Nicarágua pelos Estados Unidos.
“Em 1986, entraram na negociação a Argentina, Uruguai, Peru e Brasil. Aí se criou o grupo de apoio a Contadora, que depois deu origem ao Grupo do Rio. Esse é o primeiro grande esforço de concertação e de integração latino-americana”, afirma Rondó.
No livro O país embaixo da minha pele, a escritora nicaraguense Gioconda Belli – atualmente radicada nos Estados Unidos, mas que participou da revolução sandinista – narra o clima de invasão que dominava a Nicarágua naquela época. “Os companheiros e eu fazíamos ridículos comentários sobre o que aconteceria se Regan decidisse lançar sobre a Nicarágua a 82ª Divisão Aerotransportada, escreve Gioconda. “E de como que os marines, os Jonhnys, chegariam a nos matar. Bastava que eles deixassem cair paraquedas como numa nuvem de Milk Ways e todos nos dispersaríamos mareados pelo odor de chocolate que não víamos há meses de carência e embargo econômico”.
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