As análises disponíveis sobre o inesperado resultado das eleições presidenciais americanas tentam dissecar a personalidade do candidato eleito ou entender “o que deu errado”. Seria a metodologia de pesquisa ultrapassada? Teriam os jornalistas olhado para o próprio umbigo e não captado o movimento ascendente a favor de Trump? A estratégia eleitoral de Hillary Clinton teria sido equivocada, ao subestimar Ohio, Iowa, Wisconsin, Pennsylvania e Michigan, estados “democratas” durante seis eleições presidenciais consecutivas? E o voto facultativo, com registro anterior do eleitor, como avaliar com precisão quem realmente vai se dar ao trabalho numa terça-feira normal de expediente?
Uma vitória ou derrota numa eleição presidencial nunca é resultado de um só fator, mas de diversas variáveis. E é muito provável que todas essas explicações, combinadas, tenham influenciado na vitória de Trump. Mas aqui, nesta coluna, tenho outro tipo de proposta: o resultado eleitoral está dado, vai continuar repercutindo por quatro anos, mas, depois disso, o que virá? Que mudança na política dos Estados Unidos não foi sentida pelos analistas? Afinal, quem elegeu Trump?
Para começar, é bom deixar claro que a vitória do “republicano” foi simbólica – de grande simbologia, digamos assim, mas simbólica. Isto porque, diferentemente do Brasil, a eleição para presidente dos EUA é indireta. O eleitor elege representantes, os delegados de cada estado, que, por sua vez, escolhem o/a presidente. Como o sistema é the winner takes all (o vencedor ganha tudo), uma quantidade abissal de votos é desperdiçada: em cada estado, o/a candidato(a) à presidência que conseguir a maioria dos delegados leva o estado inteiro. Isso explica porque Hillary Clinton ganhou no “desimportante” voto popular (47,7% contra 47,5%), mas perdeu no que vale, o número de delegados (o mesmo aconteceu com o derrotado Al Gore no ano de 2000, ganhando no voto popular, mas perdendo no número de delegados para Bush).
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Estrategicamente falando, para o candidato, vale mais uma vitória apertada na maioria dos estados do que vitórias acachapantes em alguns. Hillary obteve vitórias acachapantes em Nova York e Califórnia, estados grandes, populosos – e isso não serviu para nada. O erro crucial da campanha foi exatamente este: concentrar nos estados vermelhos e ignorar quase que por completo os azuis (dos democratas, vitória dada como praticamente certa). Redutos democratas oscilaram para Trump por margens muito pequenas, e ele levou o estado todo. Como exemplos, Trump ganhou os agora ex-democratas estados rurais de Wisconsin, Pennsylvania e Michigan por menos de um ponto.
Dito isso, qual o perfil do representante que ajudou a eleger Trump? Que mudanças esses estados sofreram desde a eleição de Obama? A Pesquisa Eleitoral Nacional (National Election Pool, um consórcio formado por empresas de comunicação) mostra que quem elegeu Trump é: conservador (81%), republicano (90%), do sexo masculino (53%), casado (58%), branco (58%), cristão protestante (60%), se diz religioso (53%), tem mais de 40 anos, se define como heterossexual (48%), não tem diploma universitário (51%), dispõe de renda relativamente alta, considera imigração e terrorismo os principais assuntos com que o presidente precisa lidar, e é habitante de área rural (62%).
Nos estados rurais já mencionados aqui, onde Trump venceu por muito pouco, os “sem diploma” superam os graduados em: 20% (Wisconsin), 12% (Pennsylvania) e 17% (Michigan). Em Ohio e Iowa, onde Trump ganhou de lavada, quem não têm diploma de curso superior supera em 33% quem tem. Historicamente, “brancos sem diploma” são cortejados tanto por republicanos como por democratas. Nas eleições presidenciais de 1992 e 1996, Bill Clinton ganhou este grupo por apenas um ponto percentual.
No entanto, nas últimas eleições, os americanos brancos sem diploma – que também são evangélicos e se definem como mais religiosos e heterossexuais – têm votado cada vez mais no GOP (como é chamado o partido republicano), um forte sinal de que se cansaram de anos de tolerância em relação à política imigratória (latinos, por exemplo, somam 11% do eleitorado) e à política sexual (em 2015, a Suprema Corte reconheceu o casamento gay). Esse grupo também está farto de governos que tentam equilibrar o capitalismo com programas sociais, e pensam em fortalecer a economia nacional fechando as fronteiras não só para os imigrantes, mas também para as importações – o famoso protecionismo populista-nacionalista que tem como mantra “a globalização rouba empregos”.
A partir daqui, eu poderia escrever sobre o que aconteceria “se Trump for Trump”, que a economia brasileira não seria tão atingida porque apenas 15% das nossas exportações vão para os EUA, etc. Mas minha proposta, de novo, é diferente. Como brasileira, jornalista e analista política, não resisto. Quero fazer analogias entre Brasil e Estados Unidos. “Mas são tão diferentes!”, diz o senso comum. Será mesmo?
Do ponto de vista econômico, a eleição de Trump embaralhou tudo, mostrando que não existe mais muito sentido falar em esquerda e direita. Antigamente, quem era de esquerda defendia mais proteção; os de direita se mostravam liberais em relação ao trabalho e comércio. Hoje, Trump, de “direita”, não se enquadra no padrão econômico tradicional, e se parece mais com o governo de esquerda de Dilma Roussef. Então, proponho falar sobre a guinada conservadora na área dos costumes, Brasil e Estados Unidos.Vamos lá.
A segunda cidade mais populosa e cosmopolita do Brasil, no estado vitrine do país para o mundo, elegeu prefeito o líder evangélico Marcelo Crivella (PRB) com 59,37% dos votos (contra Marcelo Freixo, do Psol). O eleitorado de Crivella, assim como o de Trump, não tem diploma de curso superior, e não gosta do currículo de Freixo: defensor da legalização do aborto e das drogas e pró-gays. O eleitorado de Crivella, como o de Trump, é mais velho; já Freixo contou principalmente com os votos dos jovens. O eleitorado de Crivella, igual ao de Trump, só cresce: em todo o Brasil, os evangélicos elegeram 14% a mais de representantes no Congresso Nacional do que na eleição anterior.
Ao ser eleito, Crivella se comparou aos também eleitos prefeitos de grandes capitais, João Doria (PSDB, SP) e Alexandre Khalil (PHS, BH): “É uma mensagem contra a legalização do aborto, a liberação das drogas e a discussão de ideologia de gênero nas escolas municipais”.
Historicamente, por causa da ditadura militar, assistimos à gerações de políticos que não se definiam como de direita de jeito nenhum. Isso gerou constrangimento aos estudiosos de ideologia política, já que só perguntar, na forma da aplicação dos tradicionais questionários, não funcionava bem. Era como se o Brasil fosse um país de centro-esquerda, olhando as respostas dos políticos. Mas hoje, com a decadência do PT confirmada nas urnas deste ano, me parece que o resultado seria exatamente o oposto. Poucos assumiriam o risco de se identificar como de esquerda…
Aliás, o estado do Rio de Janeiro já dava sinais claros da guinada conservadora antes de 2016. Jair Bolsonaro (PSC), integrante da “bancada da bala”, contra cotas raciais, a legalização do aborto, o casamento gay, e defensor da pena de morte e da ditadura militar, foi o deputado federal com maior número de votos em 2014. Há 26 anos, o eleitorado o mantém na Câmara dos Deputados. O segundo lugar ficou com Clarissa Garotinho (PR), de tradicional família político-evangélica fluminense.
O terceiro lugar foi conquistado por Eduardo Cunha (PMDB), evangélico que chegou ao posto Legislativo máximo, a presidência da Câmara, patrocinando o avanço de uma agenda legislativa conservadora dos costumes – até ser cassado depois de um processo político extensíssimo que culminou no impeachment da presidente da República.
Percepção ou fato, se a tal “guinada à direita” brasileira existe ou está sendo sobrevalorizada, é inegável que as bases eleitorais dos dois países (Brasil e EUA), que estariam promovendo esta movimentação, é parecida. Nos dois casos, o sentimento de perda vem da classe média menos instruída. Nos dois casos, a intolerância à diversidade – com a eleição de políticos que possam efetivamente levar a cabo a agenda conservadora – é a solução para “o aniquilamento da família íntegra e tradicional”. Nos dois casos, voltamos à Idade Média e à caça às bruxas.