A desinformação é um fenômeno preocupante que tem se propagado na era digital. Nesse contexto, torna-se imperativo debater, investigar e combater eficazmente essa problemática. Nesta entrevista, o pesquisador Marco Schneider aborda a questão da desinformação, explorando como ela prospera, os esforços da sociedade e da academia para minimizar esse problema, suas raízes e danos associados.
Marco Schneider é professor de Ética Jornalística na Universidade Federal Fluminense e dos programas de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano, também da UFF, e de Ciência da Informação, no IBICT; além de pesquisador da Faperj e do CNPq.
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Atual presidente do International Center for Information Ethics, Schneider é autor do livro A Era da Desinformação: pós-verdade, fake news e outras armadilhas, publicado no ano passado, 2022, pela Editora Garamond.
O professor discute como esse problema encontra terreno fértil, especialmente em contextos como a guerra no Oriente Médio, onde o acesso restrito e o controle das informações por agentes oficiais de ambos os lados contribuem para a disseminação de notícias falsas.
A guerra, além disso, é um ambiente que mobiliza emoções intensas, e a desinformação encontra ainda mais espaço em emoções negativas, como raiva e medo. Schneider também analisa como os algoritmos das redes sociais, impulsionados por modelos de negócios que buscam engajamento, favorecem a circulação de informações que provocam essas emoções, levando o conflito do campo de batalha para o campo virtual.
Ainda na entrevista, o pesquisador destaca a velocidade com que as mentiras se espalham nas redes sociais e o dano que causam à sociedade. Ele ilustra isso com exemplos impactantes, como a tragédia provocada pela desinformação durante a pandemia de covid-19, que vitimou mais de 700 mil pessoas no Brasil.
Para enfrentar a desinformação, Marco Schneider chama a atenção para a importância de se questionar a fonte das informações, de as pessoas confrontarem seu viés pessoal de confirmação e de buscarem informações de diversas fontes, cultivando um pensamento crítico. Destaca, porém, a necessidade de políticas públicas de larga escala de alfabetização midiática e informacional, bem como de regulação democrática das mídias e plataformas digitais, para que o combate à desinformação seja eficiente. A luta contra a desinformação é um desafio constante que envolve esforços da sociedade, da academia e de diversas partes interessadas.
Beth Veloso – O que é a desinformação, como ela se prolifera e por que dizem que a desinformação é uma máquina de guerra?
Marco Schneider – A palavra desinformação tem mais de um sentido. O uso corrente em português mistura o que na língua inglesa é significado por pelo menos três palavras: disinformation, misinformation e malinformation. Malinformation é informação verdadeira ou parcialmente verdadeira difundida com o intuito de prejudicar alguém. Por exemplo, tornando públicas questões de ordem privada. Misinformation é informação total ou parcialmente falsa compartilhada sem má intenção, por pessoas que acreditam naquilo. Já disinformation pode tanto significar informação total ou parcialmente falsa, produzida com intenção de enganar, quanto o mesmo que em português, ou seja, todas essas coisas juntas.
Mas o que há de novo nisso? Essas práticas sempre existiram. O que diferencia então desinformação de golpe, fraude, engano ingênuo, calúnia etc. é o momento histórico e a infraestrutura tecnológica da nossa época, marcada por quatro fatores centrais: crise da hegemonia do capitalismo ocidental; crise ecológica; recrudescimento da extrema direita; e massificação das tecnologias de informação e comunicação, na forma de smartphones com acesso a mídias digitais, controladas pelas grandes corporações conhecidas por big tech, com suas “plataformas” de produtos, serviços, vigilância e extração de dados, valiosíssimos no mercado da publicidade programática, entre outros negócios.
Em resumo, a desinformação tem sido praticada predominantemente por elementos à direita do espectro político, tipicamente negacionistas ambientais e científicos em sentido amplo, para angariar capital político e financeiro. Além de impulsionamento pago e verdadeiros exércitos de bots e pessoas mal pagas, como a desinformação é marcada por apelos emocionais, ao medo, à raiva, ela gera mais engajamento do que informações verdadeiras e racionais, o que, por sua vez, aumenta o lucro das big tech, que, portanto, pouco fazem para conter a desinformação, justificando a negligência com a defesa da liberdade de expressão.
Alguns autores atribuem a origem desse sentido atual de desinformação ao termo russo dezinformatsiya, criado na década de 1950 por um departamento de propaganda da KGB, agência secreta soviética, nos moldes da CIA americana. O termo referia-se à disseminação de informações falsas na imprensa e no rádio, com a intenção de desnortear a opinião pública. A ação de desinformar, como arma de guerra, já se encontra em tratados de guerra gregos e chineses milenares, assim como no Velho Testamento e provavelmente por toda parte. O que distingue nossa época, no meu entendimento, são os quatro fatores conjugados que listei acima: crise da hegemonia do capitalismo ocidental; crise ecológica; recrudescimento da extrema direita; e massificação das tecnologias de informação e comunicação controladas por gigantescas corporações, a maioria dos Estados Unidos.
Como uma guerra real que está tão longe pode afetar a nossa vida aqui no Brasil? Como ela se materializa na internet? É um exagero dizer que todos nós somos vítimas da guerra da desinformação?
Você se refere ao conflito Israel e Palestina ou à guerra entre Rússia e Ucrânia? Não acho que estejam afetando o Brasil tanto assim, mas não sou especialista em geopolítica. Quanto à guerra da desinformação, não no sentido estritamente militar, mas no político ideológico, ela se materializa na internet como expliquei acima e, essa sim, faz de todos nós vítimas. Principalmente milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas na pandemia da covid-19, além de toda angústia e ansiedade que se cria quando países como Estados Unidos e Brasil parecem se transformar, em alguns momentos, em hospícios a céu aberto, repletos de alienados fascistóides.
Essa enganação de massas opera de uma forma diferente das tradicionais, de um modo mais customizado, menos visível, mobilizando medos, ressentimentos, preconceitos, e mesmo valores dignos de apreço, como a proteção às crianças, no sentido de favorecer grupos políticos os mais reacionários, cujo negacionismo científico e aparente defesa da liberdade é, no fundo, cortina de fumaça para justificar os lucros auferidos com a degradação ambiental, o massacre dos povos originários, a exploração do trabalho, a perseguição a minorias etc. E as big tech, repito, ganham muito dinheiro com isso.
Como os movimentos sociais e a academia estão combatendo a desinformação, quais as boas práticas para ficar imune a ela e não se deixar contaminar com a desinformação e qual o cenário futuro da internet, se nada for feito para combater a desinformação na sua raiz?
Há diversas ações em curso, no Brasil e no mundo. Vou falar do Brasil. Há basicamente três tipos de ação na pauta imediata: checagem; educação midiática e informacional; regulação das plataformas, envolvendo o combate à obtenção de lucros com práticas desinformativas. A primeira delas, bem conhecida e praticada por diversas agências, busca identificar e desmascarar ações de desinformação. É importante, mas chega sempre depois do dano já ter ocorrido; a segunda, é voltada para a formação de usuários das mídias tradicionais e digitais mais críticos, desconfiados, criteriosos em suas seleções e ações de consumo, produção e replicação de informação.
Conheço inúmeras ações importantes desse tipo, mas isso só surtirá resultados socialmente expressivos se esse eixo se consolidar em políticas públicas de larga escala e longo prazo. Tenho acompanhado iniciativas interessantes do atual governo federal, que apontam nesse sentido. Por exemplo, há cerca de um mês foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto 11.753 de 25 de outubro de 2023, que institui o Comitê de Enfrentamento da Desinformação sobre o Programa Nacional de Imunizações e as Políticas de Saúde Pública. Por fim, temos a questão regulatória.
A Europa tem avançado nessa questão, mas o debate aqui já vem sendo amadurecido há alguns anos. Há controvérsias entre os diversos atores envolvidos no debate e interesses poderosos minando os esforços de regulação democrática das plataformas, mas quero crer que iremos avançar. Não é censura o que se pede, é transparência e imputabilidade de agentes que conscientemente colaboram e se beneficiam com a propagação de desinformação perniciosa. Infelizmente não há espaço aqui para aprofundar o debate em detalhes.
Acrescento que, para além desses três eixos de ação, que compõe a pauta atual, projeta-se também no horizonte a ideia de uma internet não corporativa, que funcione como serviço público, não controlada nem pelo mercado, nem pelo estado. Mas esse debate ainda é, pelo que sei, incipiente. Bem, vou listar adiante diversas iniciativas da academia e da sociedade civil organizada no sentido da promoção desses três eixos que apresentei.
A Câmara já fez uma CPMI da Desinformação, o STF já fez um inquérito das fake news, a Câmara já preparou um projeto que responsabiliza as big tech, Google, Meta e outras redes, pela propagação de desinformação. E parece que o problema só piora. Isso é verdade? Como explicar isso?
Não saberia dizer se o problema só piora. Me parece que não, ao menos no momento atual. Pode piorar. Mas certamente já esteve pior. Muita falcatrua já foi revelada e tornada de conhecimento público. O Iraque não possuía armas de destruição de massa, justificativa fraudulenta para sua invasão e massacre pelos Estados Unidos, mesmo antes da popularização das mídias digitais. Nesse caso foi a velha mídia mesma que fez o jogo sujo. No âmbito do que tenho chamado de desinformação digital em rede, os exemplos de falcatruas são inumeráveis: falcatruas eleitorais, como nos casos de Trump e Bolsonaro, com verdadeiros exércitos de fabricantes e propagadores de fake news sobre os adversários e seus projetos, e no caso do Brexit. Na saúde pública, na destruição ambiental, nos casos de assassinatos em escolas fomentados nas redes digitais. Aí não se trata propriamente de desinformação, mas de discursos de ódio, os quais, entretanto, também podem ser caracterizados como ações desinformativas, na medida em que desumanizam seres humanos, mesmo crianças. Ou seja, acho que ainda falta muito para termos uma opinião pública devidamente esclarecida e sensibilizada sobre tudo isso, mas me parece que temos avançado, pelo menos no Brasil, quero crer.
E como você pediu, Beth, listo a seguir uma série de iniciativas da academia e da sociedade civil, agindo algumas vezes em conjunto, de prevenção e combate à desinformação. Convido leitoras e leitores a conhece-las melhor, acessando os links abaixo, começando pela Rede Nacional de Combate à Desinformação, que congrega dezenas de grupos de pesquisa, jornalistas, ambientalistas etc. dedicados à questão. No site da RNCD tem também uma aba chamada “Pesquisas”, onde se pode acessar centenas de artigos científicos sobre o tema.
Indico também um vídeo de um programa sobre o tema que foi ao ar recentemente, no dia 27 de outubro, iniciativa da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura, a Ulepicc-Brasil, com a presença de especialistas, entre eles a professora Ana Regina Rego, criadora e coordenadora da RNCD. O título do programa é: Direitas, Desinformação e Desregulamentação.
Acrescento a indicação do meu último livro, A Era da Desinformação: pós-verdade, fake news e outras armadilhas, publicado ano passado, 2022, pela Editora Garamond. E do livro da Ana Regina Rego com a Marialva Barbosa, A Construção Intencional da Ignorância: o mercado das informações falsas, publicado em 2020 pela Mauad X.
Por fim, conforme solicitado, indico uma bibliografia mais extensa para quem quiser se aprofundar no tema. Quase todos os textos estão em acesso aberto:
ABRAMO, Perseu. Significado político da manipulação na grande imprensa. Centro Sérgio Buarque de Holanda de Documentação e História Política, 2006. Disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/significado-politico-da-manipulacao-na-grande-imprensa. Acesso em 25.05.2020.
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