Logo depois de chegar ao Brasil, para trabalhar como conselheiro de Imprensa na Embaixada de Portugal, o jornalista Carlos Fino parou para abastecer em um posto de gasolina. E atendendo, notando que se tratava de um estrangeiro, elogiou o seu português. E perguntou de onde ele era. “Falando eu essa língua e sendo eu da Europa, de onde você acha que eu sou?”, respondeu Fino. “Da França?”, arriscou a atendente do posto. “De forma inconsciente, não parecia passar pela cabeça dela que a língua que ela falava era não só a mesma, mas originária de um outro pais da Europa, de Portugal”, comenta Carlos Fino. Em outro momento, ele visitou em um museu uma exposição sobre o barroco brasileiro, e não havia na exposição uma menção sequer ao barroco português.
Tais situações, que parecem ter certo propósito de apagar as marcas portuguesas na formação brasileira, formam o que Carlos Fino classifica como um “estranhamento”. Por diversas razões, Portugal e Brasil, que deveriam ser próximos pelas seus laços de sangue e história, são distantes. As razões dessa situação são o tema de um livro que Fino acaba de lançar pela editora Lisbon International Press, “Portugal-Brasil: As Raízes do Estranhamento”. O livro pode ser adquirido pelo site da editora.
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Renomado jornalista e correspondente internacional em vários países, Fino veio a se aproximar do Brasil de uma forma inusitada: a partir de Bagdá, no Iraque. Foi ele quem deu o furo internacional do início da guerra no Iraque, em 2003. Correspondente da RTPI, a TV pública portuguesa, ele estava ao vivo em um terraço da capital do Iraque quando começou o bombardeio da cidade. No Brasil, o jornalista Heródoto Barbeiro, então na TV Cultura, viu a transmissão de Fino e replicou-o. Não havia naquele momento nenhum jornalista brasileiro no Iraque. E logo Barbeiro tratou com Carlos Fino que ele se tornasse uma espécie de correspondente luso-brasileiro, entrando na programação que na época ele também ancorava na rádio CBN. Foi a partir dessa aproximação que Fino acabou recebendo o convite da Embaixada de Portugal e vindo para Brasília. Quando passou a ter mais contato e perceber de forma mais clara o que ele classifica como “estranhamento”.
“Talvez nunca dois países tenham sido tão próximos. E esse é o paradoxo: é por terem sido tão próximos que eles se estranham”. É o que diz Carlos Fino nessa entrevista ao Congresso em Foco.
Essa situação que você classifica como “estranhamento” é algo que você percebeu mais detidamente quando viveu no Brasil ou algo que você já percebia antes?
É algo que me apercebi mais no Brasil. Mas eu também sou um português atípico. Eu vivi muito tempo fora do país. A minha percepção não é necessariamente a mesma do comum dos portugueses. Em relação ao Brasil, o que há e o que foi tratado já há muito tempo por sociólogos, a atitude que há em relação ao Brasil é aquela atitude tocada ainda pela vaidade do império: olhar para o Brasil como uma projeção de Portugal nos trópicos. O que não deixa de ser verdade até certo ponto. Mas uma ideia de que o Brasil deveria reconhecer a bondade desse passado histórico. E isso é uma coisa que só há na cabeça dos portugueses. Não está na cabeça dos brasileiros. Vivendo no exterior, não tinha muito a ideia com relação ao Brasil. O que eu tinha com relação ao Brasil era o reflexo da projeção do Brasil em Portugal de diversas maneiras. Por exemplo: eu tinha dez anos no Além-Tejo em Portugal, numa vila pouco relevante, e havia um clube local, chamado Sociedade Artística, muito à maneira ainda do século 19, e ali havia uma sala de leitura dos jornais, com uma grande mesa, cadeirões, e em cima da mesa os jornais e revistas. E o que estava em cima dessa mesa? Uma revista que eu sempre olhei com muita curiosidade, que era a revista O Cruzeiro, a principal revista brasileira da época. É o meu primeiro contato com o Brasil. As páginas a cores destacadas do carnaval com toda aquela beleza e exuberância. Nos cinemas, havia locução brasileira dos filmes de Walt Disney. Na publicidade: “Você já tomou o seu Toddy hoje?”. Então, havia uma presença brasileira da qual eu nem sequer me dava conta, que era naturalizada. Mas quando eu cheguei aqui, percebi mais claramente que Portugal não está no radar do Brasil. Essa é a realidade. E isso é muito estranho para nós. Porque, ao contrário disso, nós achamos que Portugal é muito importante para o Brasil. Foi isso o que me levou a procurar as raízes desse estranhamento.
A nossa colonização tem algumas situações específicas que não se repetiram em outros países. O Brasil é a única colônia que foi sede do império quando a família real veio para o Rio de Janeiro em 1808. É a única colônia que se tornou monarquia e não república quando se tornou independente, tendo como primeiro imperador Dom Pedro I, o filho do rei de Portugal, Dom João VI, que depois foi ser rei em Portugal, como Dom Pedro IV. Você acha que essas situações muito particulares estão na raiz desse estranhamento?
Estão. E é isso que torna a situação complexa, difícil de deslindar. Porque tudo se mescla. É tudo contraditório e ambíguo…
Sim, porque na verdade isso deveria nos aproximar…
Mas acontece o contrário, justamente. É justamente porque fomos tão próximos e tão ligados que nós nos estranhamos. Porque foi preciso marcar, para justificar a separação, foi preciso fazer uma inversão de sentido. A partir de certa altura, Dom Pedro que, pouco antes, no final de 1821, ainda escrevia ao pai uma jura escrita com sangue de que seria sempre fiel a Portugal, passados uns meses já fala em seu puro sangue brasileiro. O sangue português transformou-se em sangue brasileiro. Começa a se formar no Brasil a ideia de uma herança maligna, responsável pela desigualdade, pela escravatura, tudo o que era negativo. E essa corrente se tornou preponderante. Começou com os liberais no império, acentuou-se com os jacobinos da República e prolongou-se depois, já no século 20, através das correntes marxistas e neomarxistas da universidade. Teve um pico na Semana de Arte Moderna em 1922. Era uma necessidade de marcar a diferença, porque era tão grande a semelhança, tão grande o laço de sangue, de história, que, para criar essa separação, foi necessário fazer essa inversão.
A República reforçou ainda mais esse estranhamento? É na República, por exemplo, que se começa a instituir a figura de Tiradentes como o grande herói brasileiro…
E não é por acaso. O aniversário de morte de Tiradentes é em que dia? 21 de abril. Um dia antes do descobrimento do Brasil. Não é por acaso. Assim se fala dele e não se fala de Pedro Alvares Cabral. O dia 21 de abril é feriado, e o dia 22 de abril não é. Tiradentes foi inventado pela República.
É também na República que se tenta desfazer a ideia de que o verde e o amarelo da bandeira não são as cores das famílias Bragança e Habsburgo, de Dom Pedro e Dona Leopoldina, mas o verde das nossas matas e o amarelo ouro das nossas riquezas…
Isso tudo foi cultivado na República. Essa corrente antilusitana é tão repetida que ela se tornou um lugar comum e quase inconsciente.
Por outro lado, não haveria talvez mais recentemente certa revisão histórica? Por exemplo, o livro de Laurentino Gomes sobre a vinda da família real, 1808, revê uma ideia que se disseminava de certa ridicularização de Dom João VI como uma figura meio boboca, comedor de frangos, para apontá-lo como um estrategista, alguém que enganou Napoleão, e que se tornou o grande responsável, com a vinda para o Brasil, pela unidade territorial do país, que não se verificou nos países da América de colonização espanhola…
Sim. Há um início de revisão histórica por parte da historiografia brasileira, a partir dos anos 1980. O livro de Laurentino Gomes, em termos mais populares, é importante, mas há também outros historiadores, e eu me refiro a eles no livro. Mas algumas ideias sutis são muito fortes.
Invertendo essa ideia do estranhamento, não existe alguma recíproca portuguesa, no sentido de também haver preconceito com relação ao Brasil? Por exemplo, uma pesquisa da Casa do Brasil de Lisboa de dezembro de 2020 aponta que 86% dos brasileiros entrevistados que viviam em Portugal reportagem ter sofrido preconceito, especialmente as mulheres, tratadas como se fossem prostitutas…
Sim. Existe, claro. Existe uma arrogância portuguesa, de se arvorar como se Portugal fosse o dono da língua. Desqualificação das pessoas. Uma dureza no trato, que é contraditória com a gentileza no trato dos brasileiros. E, mais do que isso, também a ideia muito acentuada da grandeza do passado colonial sem a necessária contrapartida que é ver o lado negro, o lado maldito, da colonização. Isso também é uma coisa que os portugueses precisam começar a fazer. E que já começaram da mesma forma com novos historiadores e antropólogos portugueses, mas é muito incipiente. E sempre que há também disputa por mercado, por postos de trabalho, isso também provoca estranhamento. O livro, para resumir o título, ficou “Raízes do estranhamento”. Mas a tese que deu base a ele, ia além. Chamava-se “Raizes do estranhamento e da incomunicação”. Porque não é somente a forma brasileira de lidar, mas também o fato de Portugal ter virado as costas para o Brasil em termos de comunicação. Portugal não investe no Brasil em termos de comunicação. A TV Globo está em Portugal, a TV Record. E o que acontece no Brasil com relação a Portugal? As notícias portuguesas no Brasil são dadas pela Agência Efe, agência de notícias espanhola! Ou pela France Press. Como Portugal permite isso? Tinha a obrigação Portugal de reagir a isso. Sob pena de a marca portuguesa no Brasil desvanecer.
E aí o risco talvez não vire o oposto? A marca portuguesa se desvanece no Brasil, mas a marca brasileira cresce em Portugal?
Já está acontecendo. A Semana de Arte Moderna falava da antropofagia: vocês estão comendo Portugal. A ideia de Chico Buarque: o Amazonas, numa pororoca, desagua no Tejo. A ideia de que o Brasil vá virar um imenso Portugal. O que está acontecendo é o inverso. Estão lá em Portugal os pais alarmados porque os “putos” (as crianças) estão lá a usar os termos brasileiros. Os portugueses que se ofendem com isso são os que não admitem que a língua é diversa e que nós temos que conviver com a diversidade e que é isso que faz a riqueza da língua.
Esse estranhamento que você menciona ele não acontece com relação a outros países de colonização portuguesa? Não acontece também, digamos, em Angola ou Moçambique?
Não. É diferente. Porque nunca houve tanta proximidade em nenhum desses outros países colonizados por Portugal. Esse é o paradoxo da situação entre Portugal e Brasil. Nunca dois países foram tão próximos. E é justamente por isso que eles se estranham.