Rafael T. Favetti *
Muito se fala da Venezuela nestas eleições brasileiras. De fato, as noticias sobre o país vizinho assustam. O objetivo deste pequeno texto é, apenas, relembrar alguns fatos marcantes da história recente da política venezuelana e, a partir daí, perceber os percalços para os quais temos de ficar alertas por aqui.
Um bom marco temporal é 1989. O presidente era Carlos Andrés Pérez, que já havia sido ministro do Interior (cargo paralelo no Brasil ao de ministro da Justiça) e também presidente da Venezuela. Ideologicamente, foi um nacionalista estatizante no primeiro mandato, mas em 1989 baixou um plano de austeridade fiscal tipicamente neoliberal. Após uma subida de preços de combustíveis e das passagens, o governo de Pérez enfrentou uma revolta popular, especialmente na capital, Caracas, que ficou conhecida como caracazo. Além da economia, havia uma grita geral contra a corrupção.
O fato é que Carlos Andrés Pérez recorreu aos militares para reprimir a população nas ruas e, como sempre acontece nesses casos, a reprimenda foi extremamente violenta. A sociedade se polarizou, a política e as instituições também. Parte dos militares, especialmente nos comandos (tropas de elite), entre os quais estava o oficial do Exército paraquedista Hugo Chávez, rompeu relações com o governo. Em 1992 houve uma primeira tentativa de golpe contra Pérez. Cada vez mais a política da Venezuela se militarizava (e polarizava).
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Os militares leais a Pérez deram o contragolpe e evitaram a derrocada do governo. Chávez foi preso. Em 1992 houve nova tentativa de golpe, mas Perez resistiu novamente. Nesses golpes e contragolpes, houve centenas de mortos. Em 1993, abriu-se um processo de impedimento político e, sem nenhum tiro, o Judiciário sacou Pérez do Palácio de Miraflores.
No mesmo ano de 1993, Rafael Caldera venceu as eleições nacionais e indultou os presos políticos. Em 1998, o oficial do Exército Hugo Chávez se candidatou a presidente e ganhou as eleições (56% dos votos), encerrando um ciclo de 40 anos do Pacto de Punto Fijo, uma aliança eleitoral entre os três maiores partidos venezuelanos. Em seu chavismo, inaugurou o que chamou de “socialismo do século 21”.
Em 1999, propôs uma reforma constitucional (aprovada em plebiscito por 72% dos eleitores) que alterou significativamente o modelo do Congresso, que deixou de ser bicameral (como no Brasil) e passou a ser unicameral. Em 2000, foi reeleito com quase 60% dos votos e conquistou ampla maioria no Parlamento. Como política nacionalista, aumentou a intervenção estatal no petróleo, o principal ativo venezuelano. Sindicatos patronais entraram em choque com o governo e explodiram greves gerais.
Em 2002, nas ruas, duas marchas opositoras (uma chavista e outra antichavista) se confrontaram e causaram a morte de 19 pessoas. No dia seguinte ao confronto, a oposição aliou-se a setores militares e tomaram o poder sob o argumento de que Chávez renunciara. Preso, Chávez conseguiu mandar um recado no sentido de que não houve renúncia, mas sim um golpe. Tropas leais a ele deram um contragolpe três dias depois. A sociedade se polarizava cada vez mais.
No seu retorno ao poder, acusou vários servidores da PDVSA (petrolífera venezuelana) de sabotagem e seguiu uma politica de demissões, desagradando uma coalizão de indicações politicas e empresariais na petrolífera.
Em 2004, a oposição chamou um referendo para tirar Chávez do poder. Entretanto, o líder bolivarianista venceu o referendo, aumentando ainda mais seu poder. Em 2005, a oposição resolveu se retirar do processo eleitoral, sob o argumento que a Justiça eleitoral não era hígida e havia fraude das urnas. Como a abstenção foi enorme, especialmente dos opositores, os chavistas mantiveram a maioria no Parlamento e Chávez foi reeleito, em 2006, com 62% dos votos. Tentou então reformar a Constituição para permitir a reeleição indefinidamente, mas a proposta de alteração constitucional foi rejeitada.
Em 2012, Chávez foi reeleito com 55% dos votos, em uma eleição polarizadíssima. Faleceu de câncer no ano seguinte e seu vice, Nicolás Maduro, assumiu a presidência.
Foram convocadas eleições em 2013 e Maduro foi eleito com 51% dos votos, mas em 2015 os antichavistas ganharam a maioria do Legislativo. Essa nova correlação de forças permitiu que a oposição chamasse um referendo para tirar Maduro do poder antes do término do mandato, mas a Justiça eleitoral barrou o referendo sob o argumento de que as assinaturas que pediam a consulta teriam sido fraudadas. O Legislativo não aceitou a decisão da Justiça e, como consequência, abriu-se uma crise institucional sem precedentes. A inflação disparou para mais de 250% em 2016 e todos os avanços sociais da era Chávez ficaram inviabilizados.
Chávez assumiu a Venezuela com um PIB de US$ 97 bilhões. Na época da sua morte, o PIB estava em US$ 371 bilhões, o que gerou reflexos em vários indicadores sociais – por exemplo, no aumento da expectativa de vida. Como há uma forte dependência da economia venezuelana ao petróleo, a queda no preço do barril de US$ 112, em 2014, para US$ 56 em 2017 gerou um colapso econômico.
A abundância do petróleo acostumou muito mal o Estado venezuelano e criou uma dependência perigosa. Outros setores da economia têm pouco peso na geração de riqueza. O petróleo é responsável por um terço do PIB, 80% das exportações e mais da metade do orçamento do governo. Assim, a queda do preço do barril impactou fortemente a economia e, num cenário político não plural, o debacle veio a galope.
As consequências foram a falta de mantimentos e o aumento da mortalidade. O governo interveio tabelando os preços e, como em quase todas as experiências semelhantes, a escassez chegou e rapidamente atingiu produtos de uso diário, como remédios, papel higiênico etc.
Milhares saíram às ruas em novas manifestações e as forças de defesa e segurança, mais uma vez, reprimiram violentamente as manifestações. Em 2018, Maduro foi reeleito com 54% dos votos, mas com altos índices de abstenção e o não reconhecimento do resultado eleitoral pelas oposições.
Ao que parece, o binômio militarização da política (que tende a ser antiliberal pelo caráter estatizante/nacionalista) + sociedades polarizadas (que não oferecem escolhas racionais às políticas públicas), na América Latina dificilmente oferece terreno próspero capaz de fomentar a estabilidade necessária ao desenvolvimento e a segurança jurídica para o crescimento econômico. Ainda mais quando há necessidade de diminuir a dependência de um setor da economia, que é o petróleo no caso venezuelano.
O modelo da Venezuela, pelo viés econômico, é inaplicável ao Brasil (apesar do peso das commodities em nossa economia). Mas as variáveis políticas e sociais do modelo venezuelano podem ser valiosas como objeto de estudo institucional: é a metodologia de se fazer política na Venezuela que temos de evitar.
* Advogado e mestre em Ciência Política, é conselheiro titular da OAB-DF e membro do Conselho Nacional de Segurança Pública. Foi assessor no Supremo Tribunal Federal e consultor jurídico e secretário-executivo do Ministério da Justiça.
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