Lúcio Lambranho, enviado especial
Manágua (Nicarágua) – Em 20 de junho de 1979, apenas 29 dias antes do triunfo da revolução sandinista, o jornalista norte-americano Billy Stewart, correspondente em Manágua da rede de televisão ABC, foi executado com um tiro na cabeça por integrantes da Guarda Nacional de Anastasio Somoza, em Manágua. A cena foi captada pelo cinegrafista que acompanhava Stewart, numa sequência de imagens que chocou o mundo na ofensiva final contra a didatura somozista. As imagens apenas não captaram a execução do intérpete do correspondente.
A história do brutal assassinato foi compartilhada por dois personagens que estiveram na festa pelos 30 anos da revolução. O Congresso em Foco acompanhou ontem (19) a comemoração em Manágua, descrita nesta segunda reportagem da série publicada desde ontem pelo site .
Ernesto Lopez tinha apenas 11 anos quando presenciou o crime contra Billy Stewart. Hoje ele trabalha como taxista na capital nicaraguense e encheu os olhos de lágrimas quando relembrou o episódio ao Congresso em Foco. Ainda criança, deu-se conta de que vivia quase sozinho num país envolvido com uma guerra civil e com a guerrilha sandinista. Filho de dois soldados da guarda nacional, Ernesto tinha acabado de ser abandonado pelos pais, que fugiram do país por Honduras e estão até hoje nos Estados Unidos.
Quando viu os guardas matarem o jornalista em Manágua, Ernesto tentava desesperadamente encontrar a avó materna, depois de sair de um bairro afastado do centro de Manágua.
“Me lembro como se fosse hoje. Nunca vou esquecer do guarda lhe dando um chute nas costas, obrigando-lhe a se agachar e depois deitar, e disparar logo em seguida contra sua cabeça”, narra Ernesto.
Apesar de ter presenciado uma história tão marcante com apenas 11 anos, o taxista tinha acabado de passar por uma situação limite e que poderia-lhe impedir de estar ontem na Praça da Revolução para contá-la. Na manhã do dia anterior ao assassinato do jornalista da ABC, a casa de Ernesto foi invadida pelos sandinistas. Um dos dois guerrilheiros, com apenas 15 anos, segundo ele, queria matá-lo por saber que ele era filho de guardas somozistas. Sua sorte é que o outro “compa” (abreviação de ‘companheiro’) resolveu salvar sua vida por acreditar que ele não tinha participação nos atos genocidas que os pais, segundo ele, praticaram antes de fugir para os Estados Unidos.
Desde aquele dia, Ernesto nunca mais conseguiu se reconciliar com seus pais, apesar de algumas tentativas. Numa delas, Ernesto mandou uma foto para eles no exílio. “O problema é que estava metido num traje de soldado sandinista pronto para combater os contra na frente norte, onde estive por dois anos. Eles não gostaram e até hoje acredito que têm ódio de mim”, recorda, quase aos prantos, o taxista.
“Também já desisti deles, pois reconheço que praticaram o genocído antes de fugirem. Hoje vivo bem com meus filhos e minha mulher, que são minha única família. Além do meu trabalho, procuro ajudar a Frente no Centro de Participação Cidadão do meu bairro e melhorar a casa dos meus vizinhos”, diz Ernesto.
Apesar de todo o sofrimento familiar, Ernesto parecia um dos mais empolgados com a festa de ontem. “Aqui, tome cuidado, porque às vezes pode passar um ladrão e te roubar porque tem esse mar de gente, mas na época de Somoza ninguém podia andar tranquilo por essa cidade”.
O assassinato do jornalista norte-americano colocou a opinião pública pela primeira vez contra o ditador Somoza. “A cena pode mostrar aos norte-americanos, como nenhuma outra coisa pode até aquele momento, a brutalidade de Somoza. Depois disso foi impossível politicamente para os Estados Unidos não fazerem outra coisa do que forçar a queda do ditador, tratar de salvar a Guarda Nacional como um cachorro fiel de seus interesses e tentar estabelecer no país um governo moderado e com a Frente Sandinista fora desse processo”, explica a jornalista e historiadora Claribel Alegría no seu livro Nicarágua: a revolução sandinista. Uma crônica política 1855-1979.
Migração para os Estados Unidos
Família de Roberto Gutierrez resolveu mudar-se para os EUA após assassinato de jornalista (Lúcio Lambranho/CF)
Roberto Gutierrez tinha apenas sete anos em 1979 quando os sandinistas derrubaram a dinastia somozista. Um ano antes, a família tinha migrado para El Salvador pela dificuldade de trabalhar durante a guerra. O pai vendia seguros, cada vez mais difíceis de serem firmados devido aos confrontos. A mãe trabalhava num ateliê de produção de móveis coloniais e de venda de produtos importados.
Após assistirem pela TV à morte do jornalista Stewart, drama vivido pelo taxista Ernesto Lopez, os Gutierrez decidiram migrar para os Estados Unidos. Desde que a família voltou à Nicarágua, em 1991, para começar uma nova vida na terra natal, Roberto nunca tinha ido a uma comemoração do 19 de julho. Sequer passara pela Praça da Revolução. Ontem, resolveu ter essa experiência pela primeira vez, apesar da insistência dos pais e da irmã mais nova de que poderia ser perigoso se meter junto com a multidão.
“Decidi ir ver tudo de perto porque não consigo entender, e agora acho que ainda vou levar ainda mais tempo. Queria saber por que os sandinistas têm tanto apoio de gente tão diferente, apesar de todos os problemas causados pela revolução, causa principal da nossa saída do país e que nos provocou tanto sofrimento”, diz Roberto, que é formado em administração de empresas pela Universidade de Miami.
Nos últimos dias, Roberto estava tentando planejar uma volta definitiva para seu país. Enquanto isso, trabalha como diretor de vendas e marketing do hotel Internacional Manágua, onde o repórter do Congresso em Foco está hospedado desde o último dia 9 deste mês. Diante das tentativas da família de convencê-lo de que não deveria ir à festa dos sandinistas, ele pediu para ir junto com a reportagem do site até a Praça da Revolução.
São da máquina fotográfica digital de Roberto as fotos produzidas para esta reportagem. O repórter teve a câmera furtada logo nos primeiros minutos em que tentou chegar mais perto do palco principal da festa organizada pelo governo Ortega e pela Frente Sandinista.
Roberto parecia preocupado durante a comemoração e se mostrou cético quanto aos propósitos do atual governo e das ações dos sandinistas quando comandaram o país até a derrota eleitoral em 1990.
“Percebi logo que nos olhavam como se fôssemos estranhos nesta festa. Por isso, tratei de não olhar fixamente para ninguém. O problema é que quando voltamos, em 1991, as pessoas andavam pelas ruas passando fome e a situação não mudou muito depois de tantos anos”, acredita o ex-exilado nicaraguense.
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