A experiência pode nos parecer bem familiar nesses tempos de isolamento social: imagine-se obrigado a permanecer por um longo período em um mesmo lugar, vivendo dia após dia uma rotina indistinta até que lentamente comece a perder a noção de tempo cronológico. Você vai deixando de contar os dias e nem se lembra mais se hoje é quarta ou quinta, por exemplo. Aquele fato marcante, teria acontecido na semana passada ou há um mês? O relógio e o calendário vão tornando-se cada vez mais inúteis à medida em que a vivência do tempo ajusta-se a um ritmo novo, marcado pela subjetividade.
Essa experiência radical de temporalidade é um dos grandes temas abordados em A Montanha Mágica, uma das obras-primas do escritor alemão Thomas Mann. Lançado originalmente em 1924, o livro retrata a jornada do jovem Hans Castorp, um recém-formado engenheiro naval alemão, em uma visita ao Sanatório Internacional Berghof. Situado na badalada cidade suíça de Davos (sim, aquela mesma que, nos tempos atuais, recebe anualmente a elite financeira global em um concorrido evento: cada época com os seus enfermos), o sanatório hospeda seu primo, Joachim, que está em tratamento para a tuberculose. Uma vez lá, Castorp descobre que também é portador da doença e sua estada, prevista para durar meras três semanas, vai se estender por inacreditáveis sete anos.
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A Montanha Mágica (título, por sinal, de uma das melhores canções da Legião Urbana, incluída no disco V) é, nas palavras do próprio autor, um zeitroman em um duplo sentido: ao mesmo tempo que é um romance sobre o tempo, é também sobre um tempo determinado (no sentido de um romance histórico). Em suas mais de 800 páginas na tradução portuguesa, temos um amplo retrato da sociedade europeia nos anos que antecedem a eclosão da 1ª Guerra Mundial, no qual somos apresentados a todo um modo de vida que está prestes a sucumbir diante da tragédia histórica que se avizinha.
Ostentação à moda Berghof
Nessa sociedade metafórica e literalmente doente do Sanatório Berghof, a rígida moral e os bons costumes burgueses da época não encontram guarida: lá campeiam livremente a jogatina, a embriaguez, o adultério, as aventurosas amorosas – enquanto os esforços para se manter as aparências mantêm-se no mínimo exigido. As distinções de classe são rígidas e a busca por status social é constante: no caso, ostenta-se as temperaturas elevadas de febre e os graus mais avançados e perigosos da doença. Nesse microcosmos, as preocupações intelectuais e espirituais mais elevadas são reservadas para poucos, já que, de modo geral, a galeria de personagens é composta de tipos bem ordinários; alguns beiram as raias da pura ignorância, como é o caso da Sra. Stöhr (que bem poderia ser a bisavó da Magda, a personagem inesquecível do Sai de Baixo)
Dentre essa diminuta elite intelectual, destaca-se o humanista italiano Lodovico Settembrini. Dele partirão as críticas mais ácidas aos costumes pervertidos do lugar, bem como as tentativas de educar a alma algo indolente e fascinada pela doença e pela morte de Hans Castorp. Herdeiro dos ideais iluministas europeus, o inesquecível personagem acaba revelando os limites (e contradições) da “crença” na razão, no progresso e na cultura letrada como guias infalíveis para a obtenção de um futuro melhor para a humanidade – como a Escola de Frankfurt bem mostrará nas décadas seguintes.
No seu furor pedagógico, Settembrini não poupa nem uma das grandes paixões do jovem herói (e do próprio Thomas Mann, vide outra de suas obras-primas, Doutor Fausto): a música. Para ele, é a forma de arte mais politicamente suspeita, pois representa tudo o que existe de semiarticulado, de duvidoso, de irresponsável e de indiferente. Assim, a música exerceria uma influência diabólica em nós, por entorpecer e estorvar nossa atividade e progresso. Sábias (e vãs) palavras, pois como resistir àquela sympathy for the devil?
Jornada espiritual
Hans Castorp é um jovem que nitidamente necessita de aconselhamento intelectual/espiritual, e Settembrini logo se dá conta disso. Órfão de pai e mãe, ele sempre cumpriu as tarefas que a vida lhe impôs e atendeu às expectativas alheias sem questionamento e sem entusiasmo. Seus momentos de prazer se resumem a desfrutar dos inseparáveis charutos Maria Mancini. Por isso, a obrigação de permanecer em tratamento no sanatório não é vista com maus olhos por ele, cuja vida “lá embaixo” nunca lhe foi muito atraente. Castorp é, nas palavras do próprio narrador, um sujeito medíocre, daqueles certinhos demais por pura falta de imaginação. Fosse outra a época, poderia ter sido facilmente cooptado para engrossar as fileiras do Partido Nazista, por exemplo.
Mas Hans Castorp é salvo da mediocridade por sua disposição a discutir ideias e a viver novas experiências: enquanto submete-se ao tratamento, adota como lema placet experiri (algo como “prazer em experimentar”, em latim). É nesse espírito que ele se permite viver uma paixão transformadora pela irritantemente atraente Cláudia Chauchat. A russa de olhos quirguizes e talhe felino lhe fará entrar em contato com seus desejos mais obscuros e irracionais e lhe reservará boas e más surpresas.
Na verdadeira jornada espiritual que vive nas alturas, acompanhamos o jovem Castorp a desenvolver sua autoconfiança e autonomia enquanto aprende a elaborar seus próprios pensamentos a partir das influências que recebe de Settembrini e de outros personagens. É, para usar uma noção proposta pelo psicoterapeuta suíço Carl G. Jung, um exemplar paradigmático do processo de individuação, cujo ápice encontra-se no famoso capítulo intitulado Neve, marcado justamente por um sonho repleto de arquétipos. Nesse sentido, A Montanha Mágica é um dos melhores representantes do gênero romance de formação, tal como Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe.
Opção profilática
A leitura d’A Montanha Mágica nesses dias turbulentos e ameaçadores foi profilática. A impaciência daqueles personagens que, desrespeitando as recomendações médicas, interrompiam o tratamento para voltar às suas vidas rotineiras (e, pouco depois, morrer) me servia de alerta constante para não relaxar a quarentena. Preferia escandalizar-me com a insensibilidade do doutor Behrens diante da morte de seus pacientes à indiferença sociopata de alguns de nossos dirigentes com a tragédia (evitável) de dezenas de milhares de vítimas da covid-19. E cada vez que me deparava com umas discussões no Twitter sobre “quem pode entrar na frente ampla?”, ou “o país não aguenta outro impeachment!”, eu corria para as páginas do romance ansiando por mais um debate com o inesquecível Settembrini.