O republicano Donald Trump tomou posse na Casa Branca na condição de maior ameaça à democracia dos EUA. Mas ele impõe também um evidente risco ao mundo – da sua inspiração à extrema direita e ao neofascismo internacional até as instabilidades econômicas que pode gerar, do seu negacionismo climático aos riscos à paz e à soberania de outros países em múltiplas fronteiras. Essa nova era traz problemas não apenas aos estadunidenses e aos imigrantes que lá vivem, mas a praticamente todos os cidadãos mundo afora.
Tanto que em seu primeiro discurso, Trump declarou emergência na fronteira, confirmou medidas anti-imigração, falou em revisar o sistema comercial e taxar países para estabelecer o “serviço de receita externa”. O novo presidente dos EUA também anunciou a saída do país do Acordo de Paris e da Organização Mundial de Saúde (OMS) e recolocou Cuba na lista de países que financiam o terrorismo no mundo. As medidas de Trump trarão problemas de ordem sobretudo econômica e geopolítica. Comecemos pela geopolítica.
Mesmo antes de tomar posse, Trump anunciou seu novo mundo: o mundo da cizânia, da desconfiança, da usurpação de direitos e da negação à soberania de países, vizinhos ou não. Falou, por exemplo, em retomar o controle do Canal do Panamá, desde 1999 totalmente controlado pelo governo panamenho. Ameaçou ocupar a Groenlândia, território com governo próprio mas sob a Constituição da Dinamarca. Sugeriu incorporar o Canadá.
Leia também
Trump foi além. Disse que fará um acordo com a OTAN, no qual obrigará a Alemanha e a França a dizer que existem fronteiras na Europa. Ainda faz pressão para que os seus aliados na OTAN aumentem os gastos com defesa, num esforço a todo custo para impedir que a Rússia lance qualquer ataque futuro no território europeu. Por suas ameaças, no entanto, o maior risco imposto hoje à Europa chama-se Donald Trump. Seus movimentos são inacreditáveis até mesmo para os padrões trompistas. Alinhado com a extrema-direita da Europa, seu verdadeiro objetivo é desconstruir a União Europeia.
Enquanto isso, Hamas e Israel fecharam acordo de cessar-fogo na Faixa de Gaza e liberação de reféns, o que Trump reivindicou para si, numa evidente corrida contra Joe Biden pelos créditos. Na sua lógica de promover a “paz através da força”, convém destacar a sua declaração anterior: ou reféns são devolvidos pelo Hamas ou ele transformará o Oriente Médio no inferno. Os EUA já tentaram isso no Vietnã, os franceses na Argélia (e também no Vietnã), e a Alemanha de Hitler tentou na Rússia e em outros países da Europa. Sem esquecer o próprio exemplo norte-americano no Afeganistão, de onde suas tropas militares saíram de maneira humilhante, além das situações enfrentadas no Iraque e na Líbia, onde os EUA ajudaram a destruir as instituições já frágeis, e mais recentemente na Síria, que caminha para situação similar.
A história mostra que, apesar de acharem que podem, os EUA não podem tudo – mesmo com o seu poderio militar.
Trump já deixou evidente que usará a força econômica para atingir objetivos geopolíticos. Uma coisa será inevitável: o acirramento da guerra comercial entre os EUA e a China, deflagrada no primeiro mandato de Trump e continuada por Biden. O aumento de tarifas sobre as importações tem como alvo principal a China, mas não só contra ela. Retaliações em cascata deverão provocar estragos generalizados. Essa é uma das formas com as quais Trump pode ameaçar o Brasil, com políticas protecionistas prejudicando as exportações de produtos industriais brasileiros para os EUA.
Caso suas políticas desacelerem a economia chinesa, o agronegócio do Brasil também enfrentará dificuldades. Além disso, o temor de uma inflação alta nos EUA manterá as taxas de juros elevadas em ambos os países, levando a menos investimentos estrangeiros diretos no Brasil e aumentando os desafios para o presidente Lula manter a economia brasileira estável.
Enquanto busca fugir dos problemas reais que os EUA enfrentam hoje – aumento da desigualdade, falência da saúde, aumento dos sem-teto, epidemia de dependência de drogas sintéticas, crescimento da violência, a imigração e seus desejos destrutivos nos países vizinhos, do México à América Central, entre outros – Trump escolheu um problema doméstico e aparentemente uma solução global. O problema: a valorização do dólar. A solução: destruir a concorrência. Para isso tentará desvalorizar a moeda norte-americana. Se não conseguir, vai pelas tarifas.
Há duas maneiras clássicas de enfrentar a concorrência: se desvaloriza a moeda, o país importa menos e exporta mais; se valoriza a moeda, importa mais e exporta menos. Na década de 1980, enfrentando déficits comerciais e fiscais, o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, obrigou o Japão a assinar o Acordo de Plaza, o que levou a sucessivas valorizações do iene japonês, à relocalização das indústrias japonesas no exterior e a 20 anos de estagnação do Japão.
Corte de impostos e tarifas elevadas podem significar aumento dos juros e do serviço da dívida, trazendo de volta a inflação que derrotou Joe Biden. Mas Trump está procurando sair da perda de competitividade internacional dos EUA e do impasse com que a hegemonia norte-americana precisa lidar diante da concorrência com a China, com a Ásia e com os BRICS do Sul Global. E tenta escapar disso através da pressão sobre os países para que valorizem suas moedas, ou aceitem tarifas. Está, por exemplo, obrigando a Europa a impor sanções contra a Rússia ou impedi-la de ampliar o comércio com a China.
Os EUA, apoiados no dólar, no poderio militar e no controle da informação e da cultura, pretendem impedir pela força as mudanças geopolíticas, objetivas e irreversíveis que são produto da emergência de China, Índia, Rússia, Irã, Turquia, Indonésia, Arábia Saudita e Brasil, assim como não puderam impedir a reconstrução do Japão e da Alemanha, mais tarde da Coreia, além da libertação da África e da Ásia depois da Segunda Guerra.
Os desafios são imensos e prenunciam uma época de instabilidades, além de solução de conflitos entre nações via coerção e sanções econômicas. Esse tipo de solução não começou com Trump, mas tende a se aprofundar com ele, anulando qualquer espécie de governança mundial, seja por meio das Nações Unidas, no modelo surgido em consequência da Segunda Guerra Mundial, seja por meio dos acordos e instituições construídos no pós-guerra.
Só enfrentaremos bem essa conjuntura internacional com um projeto nacional de desenvolvimento, que expresse os interesses das diferentes classes que se aliaram em busca de um objetivo histórico e de diferentes setores – sob pena de ver alguns setores se beneficiarem e outros não. O presidente Lula tem capacidade e prestígio para preparar o governo e o país para as consequências das medidas que Trump adotará. Elas exigirão uma nova estratégia para a relação do Brasil com os EUA, o que significa mudanças na própria política externa brasileira. Lula precisará também liderar um movimento político nacional e promover uma revolução social capaz de colocar o Brasil como país soberano líder da integração da América do Sul. Tem também capacidade de construir consensos mínimos, unindo setores de classes empresariais e classes trabalhadoras, de modo a superar divisões e evitar más escolhas.
O jogo de Trump no plano internacional serve de alerta ao Brasil, que precisa buscar autonomia tecnológica e financeira. Não pode, portanto, nem prescindir da capacidade de transferência de tecnologia, créditos e investimentos que a China tem, nem subestimar o outro mundo que está surgindo. Há de equilibrar-se nessa redistribuição de poder global, olhando para os EUA e ao mesmo tempo para a força da China e do Sul Global. Somos parte do Sul Global e dos BRICS, que são a força emergente do século XXI, mas nosso entorno histórico geopolítico é a América Latina e nossas relações com os EUA e a Europa.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br