Lucio Reiner *
Sofremos, diuturnamente, um bombardeio de informações a respeito da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Contudo, existe uma dificuldade em verificar e, mais ainda, conhecer, o que de fato está ocorrendo e por quê. Do lado ocidental, onde nos situamos, há uma evidente canalização simplificadora determinando que a Rússia é o vilão e a Ucrânia uma inocente vítima. Do outro lado (Rússia, China, e outros), é exatamente o oposto!
É fácil, e até produtivo, simplificar realidades complexas, propondo soluções rápidas para conflitos bélicos mediante “vontade política” ou banalidades similares. Isso conduz boa parte dos eleitores a aceitar decisões unilaterais dos governos que redundam em imensas despesas militares (um pleonasmo, arrisco) e a tender a deixar outros itens das agendas nacionais em compasso de espera.
O título “a névoa da guerra”, síntese de uma reflexão de Clausewitz, refere-se ao documentário sobre a guerra do Vietnã protagonizado por Robert McNamara, então secretário de Defesa dos Estados Unidos, onde este reconhece os erros que levaram à derrota americana. A posteriori fica fácil ver o óbvio, mas que a “névoa” impede de enxergar.
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A história da Ucrânia e da Rússia remonta a mais de um milênio. Curioso é constatar que a Rússia atual tem sua origem em… Kiev, o então Rus de Kiev, lá pelos séculos 9 e 10. Desde aquele passado longínquo, ambas as nações têm conhecido conflitos e reconciliações que o espaço aqui disponível não nos permite detalhar. Vamos nos ater aos fatos mais recentes.
Com a implosão da União Soviética, surgiram ou ressurgiram um número de estados independentes.
PublicidadeA Ucrânia foi um deles, ocupando o espaço da antiga República Socialista Soviética da Ucrânia que era até (como a atual Belarus) membro da ONU. Foi uma esperteza de Stálin para ter mais 2 votos. Esse território ucraniano era fruto de espólios de guerra, parte da Romênia, parte da Hungria, parte da Polônia e foram incorporados, após 1945, ao território ucraniano original. Em 1954, o então líder soviético Kruschev, ucraniano, cedeu a Criméia à Ucrânia, tirando-a da Rússia.
Fica evidente que o território da Ucrânia atual é uma construção recente e que, de fato, o país nunca foi um estado independente até 1991. Isto é importante para entender, mas não justificar, a retórica russa. A Rússia, por seu lado, também se encontra em uma situação inédita, ao ter perdido abruptamente sua vasta zona de influência que ia da Ásia Central ao coração da Europa.
Os personagens também devem ser levados em consideração. Putin, protótipo de vilão ideal, ex-agente da KGB, saudoso da pretensa glória da finada União Soviética e determinado a restaurar o poderio da Rússia. Biden, claudicante presidente dos Estados Unidos, político experiente que viu a oportunidade de dinamizar a influência norte-americana na Europa e ressuscitar a Otan. Zelensky, o líder inesperado, ator de telenovelas eleito presidente por cansaço da população com a corrupção e o desgoverno, com a popularidade em queda vertiginosa até a invasão russa, intuiu o papel da sua vida: Defensor do Ocidente.
Nesse enredo ocorre a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022. O roteiro parecia simples: Colocar um governo títere em Kiev subordinado aos interesses russos (não foi assim de 1920 até 1991?) e, en passant, controlar o mercado mundial de alimentos. Deveria ser como em 2014, quando da anexação da Criméia, Donetsk e Lugansk, quando os ucranianos fugiram como lebres. Erro trágico de leitura. A Ucrânia apresentou resistência ferrenha, pior, Zelensky utilizou de modo brilhante as mídias e ganhou a guerra da comunicação.
Esses dois últimos elementos abriram oportunidades. A União Europeia vertebrou-se, a OTAN ressuscitou, os EUA tornaram a ser os campeões do “Mundo Livre” (ma non troppo). Negócios floresceram: oportunidade ímpar de livrar-se de material obsoleto (tanques, aviões) ou perto da data de validade (mísseis, munições). Novas tecnologias puderam ser aplicadas em situação real de conflito, laboratório valioso para futuras guerras. Assim como a guerra civil da Espanha (1936-1939), o teatro de operações na Ucrânia é um campo de ensaio bélico em um país de segunda ordem.
De quem é a culpa? A Rússia rasgou o Memorado de Budapeste, de 5 de dezembro de 1994, pelo qual garantiu a inviolabilidade das fronteiras da Ucrânia em troca da entrega das armas nucleares desta. A Ucrânia descumpriu o Protocolo de Minsk, de 5 de setembro de 2014, que suspendeu o conflito em Donetsk e Lugansk ao não implementar a autonomia dessas regiões. Acresce que a Rússia invadiu um país soberano, violando a carta da Nações Unidas, e que está praticando crimes de guerra em território ucraniano.
Quanto à acusação de “neonazismo”, vale para os dois bandos. A Rússia tem a desfaçatez de utilizar esse argumento quando utiliza um exército de mercenários de clara inspiração fascista, até no nome, “Wagner”, não muito eslavo, que se diga. E na Ucrânia há bandos fascistóides como o batalhão Azov, que utilizam símbolos adaptados das divisões das SS nazistas.
Como e quando vai acabar o conflito? Sou cético a respeito da possibilidade de vitória da Ucrânia no campo de batalha, a relação de forças é por demais desproporcional. Uma vitória russa será uma vitória de Pirro, um custo absurdo para um ganho minúsculo, a conquista de toda a Ucrânia está fora de cogitação, a blitzkrieg de Putin fracassou. Agora, a Rússia aposta numa guerra longa e no desgaste da coalizão ocidental que sustenta a Ucrânia. O sofrimento da população da Ucrânia parece longe de acabar.
* Lúcio Reiner é bacharel e mestre em Relações Internacionais, respectivamente pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris e pela Universidade de Brasília. É consultor aposentado da Câmara dos Deputados, onde foi chefe da Assessoria Internacional da Presidência.
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