Qual é o papel das ideias nos processos decisórios, nas articulações políticas e entre os espaços de poder? Como as ideias se relacionam com as instituições e processos de implementação e avaliação de políticas públicas
Não há como pensar em política, exercício do poder, tomada de decisão e políticas públicas, sem considerar o papel das ideias. As ideias são o combustível que move e impulsiona todas essas áreas. Segundo Cairney (2020) as ideias “são crenças compartilhadas ou formas de pensar, incluindo conhecimento, normas, visões de mundo e ideologia”. Ideias podem ser mobilizadas tanto para engajar militantes de um sistema político em uma campanha, quanto para conquistar apoio, governar e desenvolver políticas de governo ou de Estado; e podem essas políticas se converterem em incentivos à educação e compra de livros ou à compra de armas na ilusão da garantia de mais segurança à população. Do mesmo modo, podem ser propagadas para mobilizar ou desmobilizar pessoas em torno de causas diversas ou estimular ojeriza a determinados segmentos da sociedade. Há ideias por traz da democracia, como há ideias por trás do fascismo. Há ideias que podem motivar uma governança policêntrica e horizontal e conscientizadora, como há ideias que podem respaldar governos autoritários, centralizadores, verticais e alienantes.
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Paul Cairney (2020), resumindo o pensamento de diversos autores, define as ideias como:
- Crenças, visões ou formas de pensar e formas de linguagem;
- Vírus que mutam, ganham vida própria e infectam visões de mundo, paradigmas e sistemas políticos, podendo ter ação de proporções pandêmicas;
- Potenciais reguladoras e inovadoras do pensamento, do comportamento e das ações, assim como as próprias instituições; e, portanto, compreendo que também podemos enxergá-las como crenças que influenciam crenças: “Novos pensamentos usados para reformular os problemas políticos, conhecimento ou experiência científica que influencia as crenças políticas compartilhadas por grupos de interesse e funcionários públicos dentro de ‘comunidades políticas’”. Cairney (2020);
- Potenciais promotoras de coalizões para solução de problemas: Advocacy Coalition Frameworks – ACF: “crenças centrais compartilhadas por coalizões que moldam a aprendizagem política e as tradições de ação ou conjuntos de entendimentos recebidos por meio da socialização entendimentos do mundo usados para entender e articular nossos interesses”; Cairney (2020);
Ao refletirmos especificamente sobre o papel das ideias nos processos decisórios, com base em Cairney (2020), alguns tópicos merecem destaque, como a possibilidade de serem usadas:
- Pelos atores, como recursos durante a definição de agenda;
- Como soluções políticas – a existência da ideia como caminho para a resolução de um problema; ou com efeitos devastadores no processo político, em caso de ideias exógenas que se comportarem como vírus que se chocam contra arranjos institucionais existentes e atores beneficiários desses arranjos: ainda assim, os efeitos dependerão da resistência do hospedeiro;
- Como instrumento de persuasão para conectar essas soluções às crenças do público – a própria definição da agenda: “Os tomadores de decisão precisam de ideias ou de uma mensagem política consistente que gere apoio popular e motive aqueles que executam as políticas”. (Salão, 1993: 291-92 apud Cairney, 2020);
- Como paradigmas políticos, que segundo Hall (1993) apud Cairney (2020), podem minar as mudanças ou impactar em mudanças de primeira (incremental), segunda (adaptação com mudanças mais gerais) ou terceira ordem (mudança radical);
- Como ingrediente para enquadramento que limita ou expande, foca ou desfoca a atenção dos atores e do público; e como crenças profundamente arraigadas que representam o contexto para o debate; as deias são base para debates e argumentação: “Perdemos muito se tentarmos entender a formulação de políticas apenas em termos de poder, influência e barganha, excluindo o debate e a argumentação. A argumentação é o processo chave através do qual cidadãos e formuladores de políticas chegam a julgamentos morais e escolhas políticas”. (Majone, 1989: 2, apud Cairney, 2020).
Já em relação ao papel das ideias na análise das políticas públicas, temos a destacar:
- Que as ideias podem ser vistas como a principal fonte de explicação para mudanças de políticas, eventos e resultados políticos complexos;
- Que no modelo de Análise de Multiplos Fluxos de Kingdon (MSA), que combina os elementos do tópico anterior para identificar “janelas de oportunidade” para a mudança de política, a atenção se volta para um problema, uma solução viável está disponível e os formuladores de políticas têm o motivo para selecioná-la; MSA é uma forma eficaz utilizada por estudiosos para descrever o papel das ideias e da definição de agenda e tomada de decisões (ambos de natureza confusa e muitas vezes imprevisível) dentro de uma ampla compreensão de formulação de políticas públicas;
- Que há condições que devem ser satisfeitas antes que uma política mude; e, uma solução política que parta de uma nova ideia deve conjugar o motivo, por parte dos formuladores de políticas com a oportunidade para adoção da mesma. “Uma ‘janela de oportunidade’ deve se abrir quando três ‘fluxos’ separados se reúnem ao mesmo tempo: a atenção se volta para um problema político que é enquadrado de uma certa maneira, uma solução viável para esse problema está disponível e as condições políticas são favoráveis à ação”.(Kingdon,1984: 174, apud Cairney, 2020).
- Às vezes uma decisão se torna inviável e uma política pública não “vinga”, pela perda do “timing”, já que a janela de oportunidades fecha rápido: “é fugaz, sugerindo que as ideias são poderosas apenas quando aceitáveis para seu público sob certas condições. Atores-chave – ‘empresários políticos’ – podem influenciar este processo, mas como ‘surfistas à espera da grande onda’, não controladores do mar”. (Kingdon, 1984: 173, apud Cairney, 2020).
- Mesmo com tudo isso, Cairney (2020) alerta que a literatura sobre a temática pode confundir por quatro motivos: ideia é um conceito polissêmico que varia de propostas a entendimentos de mundo; a compreensão do papel das ideias faz sentido “in use”, a partir da forma como são internalizadas, reproduzidas e utilizadas; as ideias têm poder explicativos, mas, também excludente em relação às outras; pode haver diferentes vínculos com o poder, sinalizando uma mudança de foco do elitismo para o pluralismo ou, na forma de linguagem ou paradigmas, limitando o debate mais amplo ou fornecendo condições para permanência do status quo.
Exemplo: se imaginamos o peso das ideias no discurso do então candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro, no que diz respeito às ideias liberais na economia e conservadoras nos costumes, pudemos observar três anos depois como essas ideias se traduziram na prática. Isso ajuda a analisar e compreender as “políticas públicas” na forma como foram paralisadas, modificadas e/ou implementadas em seu governo. Bolsonaro não falou, nem agiu sozinho, mas com respaldo de grande parte de seus seguidores, sobretudo os mais radicais, parte do empresariado e evangélicos.
PublicidadeO discurso liberal se materializou na Lei n° 13.874/2019, amplificando as garantias de livre mercado em detrimento do controle do Estado. Quanto às pautas conservadoras, estas, por exemplo, se refletiram nos efeitos das ações da então ministra Damares Alves, “terrivelmente evangélica” no Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos: DH esquecidos, movimento anti-aborto impulsionado e propagação da ideia de que famílias são, de fato, aquelas formadas por um pai (homem-heterossexual) e uma mãe (mulher-heterossexual), onde “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”.
Quanto à relação entre ideias, instituições e processos decisórios nas políticas públicas, consideramos principalmente que:
- Quando tratamos de disputas, exercício do poder político e da materialização das ideias em forma de políticas públicas, estamos na verdade tratando conjuntamente da disputa de corações e mentes;
- Instituições são compostas essencialmente por regras ou normas, práticas e narrativas (Lowndres e Marques, 2013). Nestes três tópicos, as ideias estão presentes: na definição das regras em uma sociedade, comunidade ou normas formais numa organização; enquanto crenças que influenciam diretamente no comportamento prático dos atores; servindo como matéria prima essencial à construção das narrativas;
- Ideias enquanto crenças podem motivar e incentivar ou constranger e limitar o processo de tomada de decisão nas políticas públicas: essa influência pode retirar ou colocar um projeto na gaveta do gestor;
- Na Teoria do Equilíbrio Pontuado – PET (Baumgartner e Jones, 1993, 2009) a atenção é um bem escasso e muito importante e acreditamos que as ideias têm o poder de mobilizar atores a pressionarem pela atenção dos gestores, fazendo com que eles “subam” assuntos esquecidos para a agenda decisória efetiva e isso pode, por exemplo ampliar o orçamento previsto para a execução uma política pública;
- O contrário do tópico 4 também pode ocorrer, já que, em sendo um bem escasso, a atenção quando – influenciada por ideias – é focada em um ponto, é desfocada de outro (s); é como o cobertor, que quando puxado para “cobrir um santo, descobre outro”;
Concluindo, compreendemos que as ideias podem ser dogmáticas, conservadoras, negacionistas e obscuras, ou questionadoras, progressistas, cientificistas e esclarecedoras da realidade, libertárias ou conformistas e encarceradoras. E todas essas perspectivas das ideias impactam sobre os atores políticos e institucionais, públicos e privados, sobre os seus respectivos apoiadores e sobre as próprias políticas públicas. As ideias podem impulsionar ao progresso ou levar uma pessoa, uma família, uma empresa, um estado ou uma nação inteira rumo ao progresso ou ao fundo do posso, rumo ao desenvolvimento de uma civilização ou ao retorno à barbárie medieval.
Sugestões de leituras para aprofundamento:
- Cairney, Paul. Understanding Public Policy: Theories and Issues. 2 nd Edition. Red Globe Press, 2020.
- Jones, Bryan. Bounded Rationality and Political Science. Lessons from Public Administration and Public Policy. Journal of Public Administration Theory and Research, v. 13, p. 395-412, 2003
- Jones, Bryan D. and Frank R. Baumgartner. From There to Here: Punctuated Equilibrium to the General Punctuation Thesis to a Theory of Government Information Processing. The Policy Studies Journal, v. 40, n. 1, p. 1-19, 2012. https://doi.org/10.1111/j.1541-0072.2011.00431.x
- Kingdon, John W. Agendas, Alternatives ad Public Policies. Boston: Longman, 2011.
- Lowndes, Vivien e Roberts, Mark. Why Institutions Matter: The New Institutionalism in Political Science. New York: Palgrave Macmillan, 2013
- Workman, Samuel, Baumgartner, Frank e Jones, Bryan. The Code and Craft of Punctuated Equilibrium. In Workman, Samuel e Weible, Christopher. Methods of the Policy Process. NY: Routledge, 2022.
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