Lúcio Lambranho, enviado especial
Monimbó, bairro de Masaya (Nicarágua) – David López (foto) tinha apenas 10 anos de idade quando a insurreição popular contra a ditadura somozista se formou pela primeira vez no bairro indígena de Monimbó, na cidade de Masaya, situada a 28 quilômetros ao sul da capital Manágua. Ele não era o único neste idade que se juntaram aos jovens e adultos para formar barricadas pelo bairro e que depois conseguiram transformar Monimbó no primeiro povoado totalmente liberado da tirania somozista, em fevereiro de 1978.
São os fatos mais marcantes dessa revolta popular que o Congresso em Foco narra hoje em mais uma das reportagens da série Nicarágua 30 anos, uma sequência de matérias sobre os 30 anos da Revolução Sandinista, o país hoje e a influência brasileira no país da América Central.
Os monimbosenhos como David sempre tinham sido admirados por suas habilidades em trabalhos de artesanato. Bordados, peça de madeiras, sombreiros, bolsas, artigos que até hoje enfeitam os dois mercados populares de Masaya. Mas quando os moradores e artesãos se viram perseguidos, torturados e mortos pelos guardas de Somoza, trataram de inventar sua própria armada de guerra improvisada e sem nenhum treinamento militar: as temidas bombas de contato. O artefato era produzido com alto conteúdo de clorato de potássio misturado com pólvora, vidros, pedras, cravos de ferro e eram atadas com um pano envolto com barro que continha a explosão até o contato com uma superfície sólida. “Crianças como eu e também entre oito e treze anos formávamos as unidades de artilharia da insurreição”, relembra David López, hoje um cidadão convertido num artesão sem emprego fixo e que luta todos os dias para levar o sustento de sua família para casa.
Quando se incorporou a artilharia das bombas de contato, David tinha acabado de sentir na pele o horror da guerra e do contra-ataque que a Guarda Nacional tratou de empreender contra os insurgentes, quase sem armas, usando primeiro bombas de gás lacrimogêneo, que logo em seguida foram substituídas pelo fogo de metralhadoras pesadas e tiros de tanques de guerra contra as barricadas. “Minha irmã de três anos morreu asfixiada pelo gás das bombas dentro do seu quarto na nossa casa. Tratamos de levá-la para o hospital quando já estava desacordada, mas ela não resistiu e morreu”, relembra o ex-combate infantil de Monimbó.
Além das armas pesadas usadas contra a insurreição, o que mais chamou de David na luta que deixou cinqüenta moradores mortos e cerca de 200 feridos foram os 100 mercenários coreanos que surgiram como num passe de mágica na linha de frente da infantaria somozista. “Estavam fortemente armados e pareciam não ter medo de nada, enfurecidos como se alguma droga os possuísse”, lembra David López.
A entrada dos coreanos no bairro também marcou os dias de luta de Asunción Gaitan Amarado (foto), na época um pai de família com 35 anos. Hoje aos 64 anos, na casa humilde que divide com a esposa dois filhos menores, Gaitan recorda a hora exata que um dos mercenários coreano caiu ferido dentro da casa de seu vizinho. “Ele estava com todas a víceras de fora e ameaçou de morte todos os adultos e crianças com uma arma, caso não tivéssemos ajudado a costurar sua barriga”. “Eles ficaram doidos e sem rumo quando o helicóptero que os orientava por rádio deve que deixar o bairro danificado pelos tiros dos moradores”, narra Gaitan, atualmente um agricultor que diz ganhar até menos de um dólar por dia com seu ofício no campo.
Ao deixar a casa, o mercenário coreano foi perseguido até que, depois de horas de fogo cruzado contra ele, foi morto numa casa de esquina, assim como outros contratados pelos ditador Anastásio Somoza para tentar conter a insurreição popular. “Um dos últimos coreanos também passou duas barricadas com uma força sobre humana. Quanto conseguiram contê-lo com uma chuva de balas, ele cuspiu um comprimido que estava embaixo da sua língua, uma droga que nunca conseguimos descobrir qual era”, explica Gaitan.
Depois da sucessivas vitórias, a Guarda Nacional conseguiu romper as barricadas e começou a chamada operação limpeza. Os soldados entravam indiscriminadamente nas casas e fuzilavam qualquer pessoa que parecesse suspeita. Apenas três guerrilheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) conseguiram chegar a tempo no bairro indígena para ajudar os insurgentes. Eram Camilo Ortega, irmão mais novo do atual presidente Daniel Ortega, Moisés Rivera e Arnoldo Quant. Camilo Ortega e Quant acabaram capturados pelos soldados da Guarda Nacional. Os corpos dos dois foram entregues com brutais marcas de tortura, mas o informe oficial era de que tinham sido mortos durante a batalha de Monimbó.
Para vingar a morte prematura de Camilo Ortega, a FSLN planejou, em março de 1978, um mês depois da batalha de Monimbó, o seqüestro de Reinaldo Pérez Vega, o segundo na linha de comando de Somoza na Guarda Nacional. Vega era um dos principais acionistas de uma grande empresa de construção civil cuja advogada era Nora Astorga, que havia militado secretamente com a FSLN desde 1969.
Como Vega sempre tentou paquerar Nora durante o expediente, o comando sandinista pediu que ela o atraísse até o seu apartamento em Manágua. Os sandinistas queriam Vega como refém e em troca de sua libertação exigiriam que a ditadura liberasse sessenta prisioneioros políticos, além de arrecadar uma soma em dinheiro que seria entregue aos órfãos de Monimbó. Mas quando o comandante somozista chega ao apartamento de Nora, ele reage com gritos à tentativa do comando sandinista que pretendia dominá-lo e acaba chamando a atenção do seu motorista, que arranca em busca de socorro.
Como a segurança de Nora estava sob ameaça com a descoberta do motorista e os sandinistas não teriam tempo para levar Vega até o cativeiro planejado, a solução encontrada foi eliminar o comandante da Guarda Nacional. No dia seguinte, seu corpo foi encontrado com golpes de facas envolto em uma bandeira vermelha e preta da FSLN. Numa carta publicada no mesmo dia no jornal La Prensa, Nora admitia a autoria do atentado e da morte do general, fato que a colocou pela primeira vez na clandestinidade junto com outros companheiros da FSLN.
Anos mais tarde na década de 80, Nora Astorga vem ao Brasil para dar uma palestra no Palácio do Itamaraty sobre a situação da Nicarágua, naquele momento envolvida com guerra entre os sandinistas e os contra-revolucionários bancados pelos Estados Unidos. Nora, segundo alunos do Instituto Rio Branco que presenciaram o evento, é aplaudida de pé, depois de fazer seu relato sobre o conflito, até mesmo pelos jornalistas, cinegrafistas e fotógrafos presentes que largaram seus equipamentos para saudar a guerrilheira sandinista. Nora morre em 1988, vítima de câncer, quando era embaixadora da Nicarágua na Organização das Nações Unidas (ONU).
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