Marcelo Viana Estevão de Moraes*
A guerra na Ucrânia é um evento síntese em que, apesar de sua singularidade, todos os principais aspectos do processo em curso de reconfiguração da ordem global estão implícitos. O conflito bélico localizado no território da Ucrânia tendo por um lado a Rússia, em parceria estratégica com a China, e de outro, por procuração, a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, é apenas a ponta do iceberg de uma disputa mais abrangente na qual os principais atores são os Estados Unidos e a China. A China emerge como a grande desafiante estratégica do statu quo mundial pela tridimensionalidade de seu poder: econômico, militar e científico-tecnológico, o que confere efetividade a sua ação diplomática. Como se sabe, diplomacia sem recursos de poder é mero exercício de retórica. Nesse contexto, o desafio para o Brasil é retomar o fio condutor da política externa ativa e altiva, aproveitando eventuais oportunidades trazidas pela multipolarização e evitando alinhamentos geopolíticos automáticos com potências ou blocos, tendo por base uma agenda ecumênica de paz e desenvolvimento que possa mobilizar o Sul Global, em especial as nossas circunstâncias geográficas mais imediatas – a América do Sul e a América Latina – por meio da retomada da União das Nações Sul-Americanas – Unasul e do fortalecimento da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe – Celac.
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A ascensão chinesa é parte de um processo mais amplo de deslocamento do centro de gravidade econômico do mundo do polo atlântico em direção ao espaço asiático. Na próxima década a Ásia deve consolidar sua posição como detentora de mais da metade do produto global, revertendo a tendência pró-ocidental insinuada pelas grandes navegações e afirmada a partir da Revolução Industrial. Esse sismo geoeconômico produz efeitos geopolíticos de longa duração devido à reconfiguração do comércio e do consumo globais, à ascensão de megacorporações regionais que estão na vanguarda da inovação tecnológica e ao peso crescente delas nas cadeias de valor globais.
A aceleração desse deslocamento coincide com o impulso dado pela China para a integração logística da Eurásia (e subsidiariamente da África) por meio da BRI (Belt and Road Iniciative), designada vulgarmente como novas rotas da seda, e com o crescente respaldo político obtido da Organização de Cooperação de Shangai – SCO (sigla em inglês), da União Econômica Eurasiana e dos BRICS para essa iniciativa, tendo por eixo basilar a parceria estratégica firmada entre a Rússia e a China. Essa parceria reconhece explicitamente os EUA e a OTAN como seu polo antagônico, assim como os EUA (e por extensão a OTAN) formalmente reconhecem a China (agora em parceria com a Rússia) como a grande desafiante estratégica da ordem nascida com a queda do muro de Berlim e a dissolução da União Soviética.
O mapa geopolítico da integração logística eurasiana está superposto no território com a área mais estratégica e conflituosa do tradicional mapa da geopolítica da energia global onde se situam as principais áreas de produção, exportação e distribuição das cadeias de petróleo e gás que abastecem as maiores economias do mundo. Essa região concentra também os grandes conflitos bélicos da atualidade, pois quem controla a provisão de energia domina a geoeconomia global: é o “grande Oriente Médio geopolítico”, abrangendo desde o Afeganistão até o leste europeu. A Ucrânia é hoje o epicentro sísmico destas três grandes cartografias: a da integração logística eurasiana, a da provisão energética global e a da guerra contemporânea.
Do ponto de vista da aliança ocidental, a guerra na Ucrânia cumpre três funções que nada tem a ver com o interesse nacional ucraniano de preservar a sua integridade territorial. A primeira função é a de desestabilizar a integração logística eurasiana, em especial a progressiva integração entre as economias da Alemanha (e por consequência da Europa) com a China. A segunda função é a de interromper a crescente integração energética da Alemanha (e por extensão da Europa) com a Rússia, com a intenção de debilitar as margens de autonomia de ambos os atores em relação ao hegemon. Por fim, a terceira função, muito mais complexa, seria a de vetor de desestabilização e desagregação da Federação Russa, emulando no heartland eurasiático o que a desintegração da Iugoslávia representou para o Leste Europeu: a criação de uma multiplicidade de soberanias irrelevantes com baixo poder potencial e real. O que parece ser também o destino da Ucrânia na esteira da atual guerra. Essa terceira funcionalidade é o que os russos, já traumatizados com o fim da União Soviética, designam de “ameaça existencial”, o que, na perspectiva deles, justificaria o uso de armamento nuclear em uma eventual escalada do conflito. Na parceria sino-russa, a Rússia seria o ponto mais frágil e sua desestabilização cumpriria um papel tático no debilitamento estratégico chinês.
Ora, essas três derivações do conflito ucraniano para a disputa hegemônica entre a aliança atlântica e a parceria sino-russa soam como óbvias à vista do paradigma mental geopolítico tradicional. Esse paradigma orientou o conflito leste-oeste, opondo o Reino Unido como grande potência oceânica (e os EUA como seus sucessores) e o Império russo como grande potência terrestre (e a seu tempo, a União Soviética), ambos representando os dois principais vetores de expansão do poderio europeu no mundo a partir do fim das guerras napoleônicas. Essa mentalidade geopolítica foi formalizada por Mackinder em princípios do século XX como uma das teorias mais influentes para a conformação do mundo contemporâneo.
A cartografia do poder global veio sendo redesenhada nas duas primeiras décadas do século XXI. Da leitura combinada e atualizada das teorias desenvolvidas pelos grandes estrategistas geopolíticos mundiais – Mackinder, Mahan e Spykman – é possível depreender a estrutura do “grande jogo” geopolítico contemporâneo. Sinteticamente, o eixo dessa interpretação está em Mackinder que considerava que o domínio do mundo adviria do controle do heartland da Eurásia, por ele designada “Ilha-Mundo”. Foi o teórico do poder terrestre por excelência. Seu par dicotômico foi Mahan, teórico do poder marítimo: o domínio do mundo derivaria do controle dos oceanos. Spykman, por fim, desenvolveu a teoria do domínio das fímbrias, ou seja, a potência marítima deveria ser capaz de conter a potência terrestre enclausurada na continentalidade eurasiana, negando-lhe o acesso ao mar. Para isso deveria controlar as regiões litorâneas da Ilha-Mundo. Como o Ártico era um oceano praticamente bloqueado à navegação na maior parte do ano em razão de suas condições climáticas (e seu degelo é um fato recente), tratava-se de vedar uma saída para os mares e oceanos circundantes. A partir dessa matriz foi formulada a estratégia da contenção de Kennan que balizou a política externa estadunidense no tempo da Guerra Fria.
O século XX terminou sob a supremacia dos EUA, vitoriosos na Guerra Fria como consequência da dissolução da União Soviética, no contexto de uma ordem “unimultipolar” assentada sobre a globalização neoliberal. Nessa ordem, os EUA pontificavam como a grande superpotência política e militar do globo e com uma hegemonia clara no campo econômico. Não obstante, apenas vinte anos depois, a China emergiu como potência terrestre desafiante, reeditando o esquema básico do quadro mackinderiano: uma potência terrestre que disputa o controle da Ilha-Mundo (Eurásia) como contraponto a uma potência oceânica (visão mahânica) que controla o mundo por meio do domínio dos mares (EUA). No século XIX, essa polaridade opunha o Reino Unido à Rússia e à Alemanha, o que inspirou a formulação original de Mackinder. No século XX, após as duas guerras mundiais, essa polaridade foi ocupada pelos EUA e pela União Soviética (o que já havia sido antevisto por Tocqueville no seu clássico A Democracia na América). No século XXI, a polaridade que emerge é entre os EUA e a China, cabendo à Rússia um papel coadjuvante. Observa-se agora a ressurreição da estratégia da contenção em novos moldes. Mas há elementos que complexificam as formulações estratégicas pretéritas.
Ao contrário da Rússia e da União Soviética, a China já possui hoje uma economia mais pujante do que a americana, se considerado o critério de paridade de poder de compra para a aferição do PIB. A China é um desafiante “tridimensional”: para além da economia, compete com os EUA também nas dimensões estratégico-militar e científico-tecnológica. Das oito maiores economias do mundo hoje, também no critério de paridade de poder de compra, cinco estão na Ásia e progressivamente se articulam com a economia chinesa (o polo mais dinâmico), em maior ou menor grau, por força da BRI e da Parceria Regional Econômica Abrangente – RCEP, a área de livre comércio da bacia do Indo-Pacífico: Japão, Índia, Rússia e Indonésia, além de outras potências de médio porte. A aliança estratégica entre China e Rússia tem caráter complementar: o dinamismo econômico chinês tende a se espraiar pela Rússia por meio da nova malha logística que conecta a economia chinesa ao coração da Europa, com maior autonomia em relação aos meios tradicionais marítimos. Por outro lado, a China tem na Rússia um parceiro rico em recursos naturais e energéticos e com um sofisticado sistema industrial militar, que potencialmente pode suprir a China com matérias-primas e facilitar o acesso a tecnologias ainda não dominadas por esta. Aliadas, exercem um poder de atração sobre os demais países da Ásia, sobre a Europa e sobre o mundo, por meios de arranjos diversos, valendo destacar o BRICS, ora em fase de expansão. A União Europeia, nucleada pela Alemanha, estava integrando-se nesse arranjo de modo acelerado até a eclosão da guerra na Ucrânia. Assim, das oito maiores economias globais, as seis já mencionadas – China, Japão, Rússia, Índia, Indonésia e Alemanha – caminhavam no sentido de maior integração, com poder de atração sobre países importantes de seus respectivos entornos: França, Espanha, Itália, Turquia, Egito, Irã, Cazaquistão, Coreia do Sul e Vietnã, entre outros.
Mesmo na comunidade anglo-saxônica, cujos países possuem fortes vínculos geopolíticos com os EUA, a Austrália e a Nova Zelândia estão na RCEP. Esses rearranjos globais também ajudam a explicar o fato de que o Reino Unido abandonou recentemente a União Europeia para se transformar em um “porta-avião” estadunidense ancorado ao largo do Velho Continente, na tradição da política britânica. Reino Unido que pode se dissolver pela secessão da Escócia e da Irlanda do Norte, inconformadas com o Brexit.
Dadas essas configurações, o conflito ucraniano funciona como um divisor de águas que tem na União Europeia sua principal vítima, notadamente a Alemanha. A natureza híbrida e multidimensional da guerra é crucial para explicar a extensão de seu impacto para além do teatro da guerra convencional.
Assim como a pós-modernidade representa menos uma ruptura e mais uma versão tardia da modernidade, com a acentuação de algumas de suas características, a guerra pós-moderna é uma versão tardia da guerra convencional que confere maior relevo a alguns de seus aspectos até então laterais. Sinteticamente, a guerra regular configurada como um combate clássico entre forças que representam formalmente os Estados litigantes em um determinado território vai sendo matizada pelo maior peso de táticas irregulares e de técnicas de guerra assimétrica, muitas vezes desterritorializadas, envolvendo ações camufladas de inteligência, psicológicas, cibernéticas, espaciais, forças não regulares/mercenárias, fomento de insurgências e terrorismo. Também há outras destinadas a sabotar as capacidades do inimigo: desestabilização política via ações de mudança de regime; sanções econômicas, comerciais e financeiras; além de guerra comunicacional pelo controle e manipulação das narrativas por meio de grandes plataformas tecnológicas de comunicação e negócios.
A guerra híbrida que conjuga não apenas capacidades regulares com forças irregulares, mas também características multidimensionais que eclipsam os limites territoriais do conflito armado, projetando-o para além dos alvos convencionais, não é nova. A guerra deixa de ser uma extensão da política para tornar-se uma condição permanente na política internacional. Em grande parte, essa mutação ou exacerbação ocorre pela dissuasão que a existência e relativa proliferação de armamento nuclear impõem para o uso dos meios bélicos convencionais nos campos de batalha, principalmente em conflitos que envolvem grandes potências. Para além de discussões conceituais e terminológicas, o que cumpre reter é que o conflito se projeta, ultrapassando os limites geográficos do combate armado.
Assim, no presente caso, o conflito armado está territorialmente limitado, mas as sanções econômicas e a guerra comunicacional desencadeadas pela OTAN em apoio à Ucrânia globalizam a guerra e produzem um conjunto de efeitos imprevistos ou indevidamente avaliados.
A guerra comunicacional gerou um clima psicossocial maniqueísta pouco favorável à adoção de soluções diplomáticas na medida em que houve uma demonização da Rússia e de sua liderança política, como se o conflito bélico fosse uma derivação de características pessoais malévolas. Essa perspectiva reduziu a margem de manobra dos líderes políticos diretamente envolvidos no conflito, emparedados pela indignação da opinião pública, em detrimento da análise dos interesses em choque desde a crise política ucraniana de 2014. Essa crise resultou na derrubada do governo Yanukovich, em uma guerra civil entre o novo governo central e as regiões russófonas, na anexação da Crimeia e na assinatura dos Acordos de Minsk que, ao não serem implementados, geraram o impasse que serviu de pretexto para a intervenção russa.
O fato de não terem sido adotadas em benefício da integridade territorial da Ucrânia medidas de pacificação que obtiveram êxito em outras regiões sensíveis, como na Finlândia e em Kaliningrado, evidencia a pouca disposição das partes em evitar a guerra. A Rússia, pelo interesse geopolítico evidente de recuperar territórios vitais russófonos estratégicos para o acesso e controle do Mar Negro e que, no século XIX, levou à Guerra da Crimeia. A Ucrânia, por supor que o apoio da OTAN permitiria não só evitar, mas reverter concessões territoriais. Os EUA, pelo interesse de contenção de um polo político eurasiático em ascensão, o que se manifesta também no Mar do Sul da China. Espremida nesse jogo, a União Europeia, a maior perdedora imediata da contenda, sobre a qual recai a maior parte dos ônus derivados do conflito e das sanções econômicas aplicadas: crise humanitária gerada por refugiados; crise energética e ambiental pela negação de acesso a fontes de energia mais baratas e limpas; crise econômica tendente à estagflação, com desvalorização do euro; e, consequentemente, instabilidade política. A Europa paga o preço de ser mera caudatária nos processos decisórios.
O efeito bumerangue das sanções econômicas, comerciais e financeiras impostas à Rússia atingiu em cheio a Europa, mas também afetou a economia americana. No caso dos EUA, para além do impacto imediato, recessivo e inflacionário, afetou a credibilidade do sistema financeiro lastreado no dólar como meio de pagamento e reserva de valor, dados o bloqueio das operações comerciais russas e o congelamento de suas reservas internacionais. A névoa da guerra impede uma avaliação precisa dos efeitos das sanções na própria Rússia, mas não são indolores. Não reverteu entretanto, até o momento, o impulso da operação militar russa.
Se a Ucrânia, conforme admitiu seu ministro das relações exteriores, assumiu o ônus de manter o conflito bélico convencional restrito a seu território, com todo o sacrifício humano e material correspondente, recebendo em compensação provisão maciça de armamentos provenientes do bloco ocidental, as dimensões não convencionais da guerra trataram de agravar as consequências do conflito por adiar ou fechar portas para soluções diplomáticas e por desestabilizar ou encarecer a provisão de energia e de alimentos em todo mundo, em um contexto em que as cadeias de valor globais ainda não se recuperaram dos impactos adversos da pandemia de covid 19.
A guerra, em sequência da peste, traz fome e mais mortes. Há assim à vista um cenário tanto mais assustador quanto mais ineptas são as lideranças e as instituições globais para a promoção “realista” da paz por meio da acomodação dos interesses contrapostos. Hoje a perspectiva global é de crise econômica generalizada, desabastecimento energético, colapso alimentar, agravamento da crise climática e escalada armamentista que pode ensejar, ainda que por acidente, a utilização de dispositivos nucleares. Tudo isso gerando mais instabilidade política e quando ainda não foram superados de todo os riscos da crise sanitária.
Considerado esse quadro, o Brasil, por suas dimensões econômicas, territoriais e populacionais, deve atuar como promotor de uma agenda de paz e desenvolvimento que mobilize o Sul Global para desarmar as tensões do conflito leste-oeste, mas qualquer estratégia deve considerar a preponderância política estadunidense no hemisfério e a crescente dependência econômica em relação à China. A agenda de paz e desenvolvimento deve ser o mote para uma estratégia coletiva que evite alinhamentos políticos automáticos e priorize arranjos diversos de cooperação econômica em prol do desenvolvimento sustentável.
Isoladamente, o Brasil tem escassa margem de manobra por seus parcos recursos de poder. O país vem de uma década de instabilidade política e de perda de dinamismo e de densidade econômica. É a partir de sua circunstância geopolítica sul-americana e latino-americana que pode atuar para articular uma agenda alternativa de interesse do Sul Global. Essa atuação, no entanto, depende diretamente do resultado da próxima eleição presidencial. A eventual recondução do atual mandatário manterá o país como pária, no ponto mais baixo de sua reputação internacional: um problema para o mundo, não um portador de soluções. Só uma liderança respeitada internacionalmente e testada na arte da política e da administração poderá fazer a diferença desejada.
A grande estratégia brasileira em termos geopolíticos abrange projetar-se sobre seu entorno em círculos concêntricos de influência. O primeiro círculo e o mais importante é a região platina, zona de maior densidade econômica e populacional. O segundo círculo incorpora o resto da América do Sul, com destaque para o arco amazônico; e o Atlântico Sul, no qual transita praticamente todo o comércio externo do país. O terceiro círculo agrega toda a América Latina e o Caribe. Os três círculos conformam o grande entorno geoestratégico do Brasil, onde sua presença ativa é vital para seu desenvolvimento e sua segurança.
Na sua afirmação como ator geopolítico global nos primórdios deste século, entre outras iniciativas, o Brasil liderou a criação da Unasul, uma organização internacional integrada pelos doze Estados da América do Sul, criada com o objetivo de, entre outros, projetar a região no mundo e articular as ações dos diversos países nos vários campos das políticas públicas, funcionando como instrumento de governança do espaço regional bioceânico, em um contexto de mudança do polo político e econômico mundial do Atlântico Norte para o Pacífico. Também foi com seu impulso decisivo que foi criada a Celac, a partir da Cúpula de Salvador, em 2008.
A posterior dissolução da Unasul significou um retrocesso para o Brasil e uma derrota de sua grande estratégia. Não foi fato isolado. Deu-se juntamente com o abandono da Celac, a inflexão regressiva da política externa e a subalternização do Itamarati, que sempre foi um órgão de excelência burocrática e que historicamente funcionou como referência para a modernização da administração civil brasileira.
O Brasil tem que voltar a conjugar o seu destino com o da América do Sul ( e, por extensão, com a América Latina), articulando uma plataforma regional que permita enfrentar coletivamente os desafios dessa nova conjuntura turbulenta. É preciso garantir algum controle sobre o entorno oceânico vital da grande “jangada de pedra” que é a América do Sul, a segurança da extensa fronteira terrestre brasileira, terceira maior do mundo, e a cooperação para o desenvolvimento sustentável, em especial da Amazônia, como resposta para a crise ecológica global e para a satisfação das necessidades da população dos biomas ameaçados.
Um projeto regional consistente não pode avançar sem o Brasil, por suas dimensões e pelo papel de liderança que desempenhou até recentemente, como ficou evidenciado. Por ser multivetor do ponto de vista geopolítico, o país conecta as grandes bacias hidrográficas amazônica e platina com o altiplano andino e, por extensão, com a costa do Pacífico e tende a ser o principal protagonista e beneficiário da integração regional. Primeiro, porque o projeto regional se articula com o próprio objetivo nacional brasileiro de consolidar sua integração territorial interna. Segundo, porque viabiliza potenciais sinergias entre os sistemas econômicos nacionais nas esferas produtiva, comercial e logística, abrindo as portas do Pacífico com os corredores interoceânicos. Terceiro, porque permite a articulação de uma doutrina estratégico-militar regional que ia avançada no âmbito do Conselho de Defesa Sul-Americano.
Vale ainda ressaltar que a Unasul, em sua curta história, realizou movimentos memoráveis no tabuleiro internacional, como as cúpulas dos países da América do Sul com os BRICS, com os países africanos e com os países árabes, em um circuito diplomático de cooperação Sul-Sul.
A partir de 2023, o desafio do Brasil é o de, superada essa página adversa de sua história no bicentenário de sua independência, aproveitar a onda política favorável que perpassa o continente para impulsionar a retomada das comunidades de interesses consubstanciadas na construção coletiva da Unasul e da Celac.
*Marcelo Viana Estevão de Moraes é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG), pesquisador do Centro de Altos Estudos de Governo e Administração – CEAG/UnB, doutor em Ciências Sociais pela PUC – Rio, pós-doutorando em Ciência Política na UnB e autor do livro A Construção da América do Sul: o Brasil e a Unasul (Appris, 2021).
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