No dia 12 de janeiro de 2024, em um texto com o título “A desigualdade socioeconômica brasileira em números estarrecedores”, afirmei:
“Esses dados deixam fora de dúvida que a desigualdade socioeconômica no Brasil é um relevantíssimo problema estrutural. É o principal entrave ao desenvolvimento econômico nacional e a característica mais importante da realidade brasileira, com profundos reflexos negativos na qualidade de vida da grande maioria da população”.
“Os dados apresentados demonstram, de forma inequívoca, o tamanho das desigualdades socioeconômicas brasileiras. Existe literalmente uma montanha de patrimônio e renda concentrados em uma fração mínima da população. Paralelamente, dezenas de milhões de brasileiros são privados das condições elementares de sobrevivência digna ou sofrem com enormes deficiências na prestação de serviços públicos e no usufruto de direitos sociais fundamentais”.
Infelizmente, a realidade não é diversa quando o olhar observa a situação em escala global. Dados divulgados recentemente mostram o crescimento da desigualdade socioeconômica mundial.
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“A riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo mais que dobrou (114%), desde 2020, enquanto quase cinco bilhões de pessoas ficaram mais pobres no período. É o que aponta o relatório Desigualdade S.A., da Oxfam, divulgado neste domingo (14), no início do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça” (fonte: noticias.uol.com.br). Deve ser lembrado que a população mundial se aproxima de oito bilhões de pessoas.
Alguns dados são particularmente preocupantes, enquanto a pobreza global avança:
Publicidade- as maiores empresas do mundo registraram recordes de lucros em 2023. Em conjunto, as 148 maiores corporações atingiram 1,8 trilhão de dólares em lucros totais nos seis primeiros meses de 2023. Esse número representa 52% a mais do que a média de lucro líquido verificada entre 2018 e 2021 (fonte: noticias.uol.com.br);
- “mais de um bilhão de adolescentes e mulheres sofrem de subnutrição (incluindo baixo peso e estatura), deficiências em micronutrientes essenciais e anemia, com consequências devastadoras para suas vidas e bem-estar.” (fonte: outraspalavras.net);
- segundo o relatório anual do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), considerada uma das principais entidades globais de análise de conflitos, os gastos militares bateram o recorde de 2,24 trilhões de dólares, algo em torno de 11 trilhões de reais, em 2022 (fonte: noticias.uol.com.br);
- atualmente, estima-se em 100 trilhões de dólares os ativos geridos pelos megafundos financeiros. Esse número, para se entender a magnitude da relevância econômica dos megafundos, supera o PIB de todo o planeta. Na década de 1970, as gestoras de ativos administravam menos de um trilhão de dólares em escala global (fonte: livro “Our Lives in Their Portfolios: Why Asset Managers Own the World”, de Brett Christophers);
- “o controle da quase-totalidade das mídias por alguns oligarcas dificilmente pode ser considerado a forma mais elaborada de imprensa livre”, provocadora observação de Thomas Piketty.
O referido relatório Desigualdade S.A. indica que, de 100 dólares de lucro registrados por cada uma das 96 maiores empresas do mundo entre os meses de julho de 2022 e junho de 2023, 82 foram distribuídos aos seus acionistas mais ricos. Sustenta o documento que tributar esses lucros, 20% maiores do que a média dos anos anteriores, no patamar de 90%, produziria cerca de 628 bilhões de dólares. Essa monumental massa de recursos seria um potentíssimo instrumento de combate à pobreza crescente.
A Oxfam, organização que produziu o relatório Desigualdade S.A., avalia que as grandes empresas promoveram nas últimas décadas uma forte ação contra a tributação. Esse movimento resultou na significativa redução da carga tributária incidente sobre elas.
A Oxfam, como forma de reverter o processo de crescimento da desigualdade socioeconômica, defende providências como: a) investimento forte em serviços públicos; b) regulação eficiente da atuação das empresas; c) quebra de monopólios e d) tributação permanente sobre a riqueza, notadamente na forma de lucros. Não devem ser esquecidos, nessa linha de providências: a) um profundo tratamento restritivo em relação aos paraísos fiscais e b) a intensa tributação do “cassino global” que movimenta uma montanha de recursos financeiros descolados, em grande medida, da chamada economia real.
A vertente do combate à pobreza, miséria e marginalização social pela via da tributação é um dos caminhos a serem implementados em escala nacional e internacional. É preciso capturar uma boa parte da riqueza circulante em atividades econômicas de enorme vulto e carrear esses recursos para fins altamente nobres, como o combate à pobreza, a realização de projetos educacionais de grande envergadura e a recuperação do meio ambiente fortemente degradado.
A Reforma Tributária da Emenda Constitucional n. 132/2023, cantada em verso e prosa, estabelece que “o Poder Executivo deverá encaminhar ao Congresso Nacional em até 90 (noventa) dias após a promulgação desta Emenda Constitucional, projeto de lei que reforme a tributação da renda, acompanhado das correspondentes estimativas e estudos de impactos orçamentários e financeiros” (art. 18). Trata-se de uma excelente oportunidade para avançar no sentido: a) da retomada da tributação sobre a distribuição de lucros e dividendos; b) tornar o imposto de renda efetivamente progressivo, com alíquotas adequadas para a maior parte das classes médias (menores) e para os super-ricos (maiores); c) finalmente criar o imposto sobre grandes fortunas e d) da adequada tributação das aplicações financeiras de grande monta.
Entretanto, o otimismo não parece estar no horizonte em relação a esse movimento em torno da redefinição da tributação da renda no Brasil. Pelo menos três entraves podem ser identificados no caminho antes desenhado: a) as consideráveis limitações de um governo que se autoproclama popular, mas que, na prática, é um eficiente gestor dos mais importantes interesses das elites nacionais; b) a existência de um Parlamento profundamente conservador, fisiológico e clientelista (na sua maioria) e c) o debate segmentado (ou isolado) da tributação sobre a renda.
Esse último aspecto precisa ser destacado. A redefinição do sistema tributário perseguindo justiça fiscal necessita de avaliações e correções conjuntas de rumos. Além da renda, é fundamental inserir no debate o patrimônio, inclusive nas suas formas mais modernas de manifestação. O desejável aumento da tributação sobre a renda e o patrimônio (em seus níveis mais elevados) deve ser um movimento calibrado em função da redução da tributação sobre o consumo.
A humanidade tem jeito. Não estamos fadados a indefinidamente experimentar todo tipo de exploração e opressão no convívio social. No entanto, para destravar os enormes potenciais da fraternidade, solidariedade e prosperidade entre todos os homens (todos, sem exceção), é preciso desmontar os mais perversos mecanismos socioeconômicos, devidamente institucionalizados e defendidos pelos principais meios de comunicação, produtores de atrasos, misérias e sofrimentos para bilhões de seres humanos.
O desmonte da parafernália geradora e mantenedora das desigualdades socioeconômicas não passa por intervenções divinas (uma cômoda transferência de responsabilidades), pela ação de mitos, messias ou ungidos pelos deuses ou por uma (falsa) cruzada moral do bem contra o mal. A ação política, consciente, organizada e mobilizada, de milhões de indivíduos, nos quatro cantos do planeta, é o caminho, o único caminho viável e aceitável, para inverter a triste realidade em que estamos mergulhados neste desafiador momento da história do planeta.
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