A idade avançada de Joe Biden, atual presidente dos EUA, tornou-se um dos principais temas na corrida eleitoral estadunidense, especialmente em razão da sua desastrosa participação no debate contra o antigo morador da Casa Branca. Embora as reiteradas mentiras do candidato da ultradireita, o ex-presidente Donald Trump, atraíssem alguns passageiros comentários na imprensa, o tema da incapacidade mental do detentor do comando do país mais poderoso do planeta dominou a mídia, as rodas de conversa e os desesperados integrantes de seu partido político.
Independentemente do resultado eleitoral e da apropriação do Estado pelos mesmos grupos políticos/ideológicos/econômicos/financeiros que se revezam nos EUA, chama a atenção a afirmação de que não se encontrou alternativa para a corrida presidencial, senão a reeleição de um deles. Paradoxalmente, na terra em que a Revolução Estadunidense de 1776 abalou o conceito da divindade governante, o instituto da reeleição se tornou elemento especial na corrida presidencial. É que, com a resistência de Biden em renunciar a disputa, um comentário se tornou quase unânime: a tentativa de reeleição do atual presidente facilitará a reeleição do ex-presidente.
Daí, à época, ter o Conselho Federal da OAB se manifestado contrário à Emenda Constitucional 16/97, que – acusada de compra de votos parlamentares já na largada – aprovou a reeleição para o Brasil. E ainda sofremos com o erro de ter permitido a reeleição para os cargos do Poder Executivo. O instituto da reeleição se tornou amante do abuso do poder político, parceiro da chantagem eleitoral, cúmplice da ausência de paridade de armas, impeditivo do rodízio de pensamentos e destruidor da democrática construção de outros quereres. A obsessão pela reeleição transformou a alternância de saberes no exercício do Poder em perdedora antecipada na arena das vaidades políticas. Com a sua imposição na política brasileira, o governante de plantão passou a cuidar de sua próxima reeleição, esquecendo-se dos compromissos com a próxima geração.
A insistência de Joe Biden nos traz, ainda, uma importante reflexão sobre o tema da “pessoa insubstituível para o exercício de determinado cargo”, reiteradamente utilizado como justificativa para a sua manutenção ou recondução. A questão é mesmo instigante, até porque a tese da impossibilidade da substituição atrai a possibilidade da criação de um perigoso culto à personalidade, em que a pessoa ungida se arvora no direito de ser a única, a inquestionável, a infalível e a vital para o destino do grupo que integra.
Ao não renunciar para que outro mais capaz conduza o destino de seu país, o estadunidense revela que na urna secreta instalada em sua mente está a paixão obsessiva pelo cargo. O seu vaidoso pleito, mal disfarça a narcisista compreensão de que o “eu” é superior ao “nós”. E quando o “eu” é confrontado pelo “nós”, o pensar diferente é taxado de heresia política, rigorosamente punido com perseguições, ameaças e perda de prestígio, não raro com o apoio dos súditos que sonham ocupar o vácuo deixado pela rebeldia contestadora. “O Cargo sou eu”, torna-se, assim, uma repaginação do egocentrismo solar do Rei francês Luiz IV, quando proclamou ao mundo: “o Estado sou eu”.
Não tenho a clarividência de Allan Kardec, Amélia Rodrigues, Bezerra de Menezes, Chico Xavier, Yvonne do Amaral Pereira, André Luiz, Mestre Valentim e tantos outros que ensinam sobre a importância do “desencarnar o espírito” para que, livre, possa renascer em outras vidas. Não tenho a expertise espiritual para aconselhar a uma pessoa que tem obsessão pelo cargo que ocupa ou dele se recusa a sair. Ou mesmo àquela que, saído, sofre pela abstinência de cargo. Não fui ungido no poder de ser a única, a inquestionável, a infalível e a vital pessoa que sabe a melhor das respostas.
PublicidadeComo não assumo o encargo de especialista ou detentor de verdades, apenas aconselho. E, confesso, tenho refletido com algumas delas ao longo da minha caminhada pela estrada da vida. Aconselho-as a compreenderem que a melhor forma de prestigiarem o cargo é deixá-lo livre, para que nele sejam incorporados outros saberes, aprendizados e biografias. A verdadeira missão de qualquer pessoa que já exerceu um cargo é a de ter contribuído com um pedaço de sua História, da mesma forma com que inúmeras pessoas contribuíram e outras contribuirão. Afinal, a arte de “desencargar” é o legado que devemos deixar.