Por oito votos a três, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal. Com a decisão, o porte de maconha continua como comportamento ilícito, ou seja, permanece proibido fumar a droga em público, mas as punições definidas contra os usuários passam a ter natureza administrativa, e não criminal. Dessa forma, deixam de valer a possibilidade de registro de reincidência penal e de cumprimento de prestação de serviços comunitários. A maioria foi formada com o voto do ministro Dias Toffoli. Ele pediu a palavra, no início da sessão, para esclarecer seu voto, lido na semana passada. O ministro havia aberto uma terceira linha de divergência, o que dificultou a compreensão de seu posicionamento.
Ficou para a sessão desta quarta-feira (26) a definição sobre a quantidade de maconha que deve caracterizar uso pessoal e diferenciar usuários e traficantes. Pelos votos já proferidos, a medida deve ficar entre 25 e 60 gramas ou seis plantas fêmeas de cannabis. “Não estamos legalizando a maconha, estamos deliberando sobre qual é a melhor forma de lidar com esse problema”, afirmou o presidente da corte, Luis Roberto Barroso.
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Oito ministros votaram pela descriminalização, concordando que a natureza da pena pelo porte para uso pessoal deve ser apenas administrativa: Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Edson Fachin e Rosa Weber, que deixou seu voto pronto antes de se aposentar. André Mendonça, Cristiano Zanin e Nunes Marques votaram pela interpretação de é válida a criminalização, desde que sem pena privativa de liberdade.
Dentre os pró-descriminalização, Toffoli e Fux são contrários a um critério quantitativo de distinção entre usuário e traficante, cabendo uma análise caso a caso e maior regulação do Executivo. Barroso fará o anúncio oficial do resultado do julgamento nesta quarta-feira, estando firmado acordo entre os ministros sobre os seguintes pontos:
- Descontingenciamento do Fundo Nacional Antidrogas, com uso de parcelas para uma campanha nacional de esclarecimento contra o consumo de drogas, tal como as existentes para o tabagismo e uso do álcool.
- Não reconhecimento do uso de drogas em local público como legítimo.
- Categorizar o porte como ilícito de natureza administrativa, e não penal.
O processo
Os ministros Nunes Marques, Cristiano Zanin e André Mendonça votaram para manter os efeitos da Lei de Drogas, sem critérios objetivos de distinção entre usuário e traficante. Dias Toffoli também votou por manter os efeitos, acreditando que as penas estabelecidas já configuram sanção administrativa.
O julgamento ocorre em meio a um episódio de tensão com o Congresso Nacional. O processo estava emperrado até 2023, quando foi retomado durante a presidência da ex-ministra Rosa Weber. O Senado reagiu, afirmando se tratar de uma interferência do Judiciário em um assunto do Legislativo, e aprovou uma PEC que constitucionaliza a proibição das drogas. A proposta agora tramita na Câmara dos Deputados, onde já foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça.
PublicidadeExplicação de Toffoli
Antes de iniciar a leitura de seu voto, Luiz Fux pediu mais tempo para resolver problemas de gabinete. Toffoli aproveitou a oportunidade para explicar novamente o seu voto, proferido na semana anterior, diante da dificuldade de compreensão por parte da opinião pública. De acordo com ele, seu voto já forma a maioria pela descriminalização, mas defendendo não o estabelecimento de um critério de distinção entre usuário e traficante, mas em novas formas de aplicação da Lei de Drogas na forma como se encontra, interpretando-a como uma lei descriminalizante.
“O meu voto é claríssimo no sentido de que nenhum usuário de nenhuma droga pode ser criminalizado. Esse foi o objetivo da lei de 2006. O objetivo da lei de 2006 foi descriminalizar todos os usuários de drogas, porque a lei de 1976, superada pela de 2006, tratava como crime o uso de drogas. Tratava como criminosos os usuários de drogas. Por isso, em meu voto desenvolvi não só aquilo que foi dito na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, que é explícito: houve a descriminalização do uso, por parte do usuário”, relembrou.
Ele ressaltou seu entendimento de que, apesar do objetivo de descriminalização, a lei de 2006 foi insuficiente para cumprir seu escopo. Por outro lado, não acha que seja o caso de revogar partes dela, menos ainda abrindo uma exceção para quantidades específicas de maconha. “A minha preocupação é que, ao dar interpretação conforme ao dispositivo em relação à cannabis, à contrário senso, pode ser entendido que os usuários de outras drogas cometam crimes”, declarou. Barroso discordou dessa interpretação.
“O meu voto se soma ao voto da descriminalização. Se eu não fui claro o suficiente, o erro é meu, é de comunicador. (…) Por isso, faço essa explicitação. Ou seja: já há seis votos pela descriminalização, mas ela já existe desde 2006, desde que foi sancionada a lei”, reforçou.
Gilmar Mendes
Gilmar Mendes, relator do caso, interrompeu a fala ressaltando que, na prática, a Lei de Drogas é proibitiva. “Tudo indica que a lei tem esse intuito, se não de descriminalizar, ao menos de despenalizar. (…) Mas como também nós, nesse debate, (…) sabemos que, à rigor, a vida prática levou não só, como vimos nesse caso, a aplicação de penas ao usuário, como também levou muitas vezes a confundir o usuário com o traficante. Na vida como ela é, as pessoas continuam sendo condenadas enquanto usuários, e condenadas no processo penal, e a partir daí sofrendo os efeitos da condenação criminal. É essa questão que me parece relevante para que possamos encaminhar à conclusão do julgamento”. Por isso, considerou que, para que a Lei de Drogas de fato seja aplicada como despenalizante, seria necessário estabelecer critérios objetivos de distinção entre usuário e traficante.
Toffoli tornou a falar, novamente se opondo à definição de uma quantidade específica de droga a ser presumida para usuário. “Vamos imaginar um rapaz pego, morador de um lugar muito pobre, com R$ 2 mil no bolso e 5g de maconha, vai ser perguntado a ele da onde ele tem esses R$ 2 mil. Ele vai ser preso do mesmo jeito, como traficante. (…) Por isso, eu não entro na fixação de quantidade no meu voto. Foi aí que muitas pessoas interpretaram meu voto como criminalizante. O meu é o mais radical de todos: é descriminalizante para todas as drogas no que diz respeito ao usuário”. Ele cobrou que o Executivo estabeleça uma política de prevenção e redução de danos relacionados ao uso da maconha, e que leve em consideração a interpretação descriminalizante das drogas.
Com a explicação de Toffoli, Barroso confirmou estar formada uma maioria em favor da interpretação de que o usuário não pode, em hipótese alguma, ser punido em matéria penal, mas apenas em matéria administrativa. Por outro lado, o voto de Toffoli não se soma ao estabelecimento de uma quantidade de presunção de uso.
Voto de Fux
Após a explicação de Dias Toffoli, Luiz Fux deu início à leitura de seu voto. Ele aproveitou para responder às acusações de que o Judiciário estaria, nesse julgamento, invadindo competências dos demais poderes. Ele concorda que a arena correta para discutir a questão de descriminalização ou não das drogas é o Congresso Nacional, mas relembrou que o caso chegou ao STF porque este foi convocado quando as demais instituições se furtaram a tratar do tema.
Ele concorda com a posição de Zanin, Mendonça e Kassio Nunes, de autocontenção do STF sobre o tema para que o Legislativo possa se aprofundar na discussão sobre as drogas. Ele defendeu cautela na decisão da Corte, pois já existe articulação no Congresso Nacional em direção à uma retaliação, na forma da PEC 45/2023, que inclui a proibição das drogas no texto constitucional.
Ele também afirma não haver consenso científico sobre o tema. “Isso me tira a paz como magistrado. Eu não tenho quietude de alma e paz para resolver uma questão que é fundada em desacordo científico. O nosso conhecimento interdisciplinar tem limite”. Por outro lado, ele concordou que falta esforço do Judiciário em dar celeridade aos processos em andamento por réus que respondem por tráfico e alegam ser usuários.
O ministro se somou a Dias Toffoli no posicionamento de que, se for definida uma quantidade a diferenciar a presunção entre usuário recreativo e traficante, esta deve partir da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. “Nós precisamos da Anvisa para decidir isso, porque isso tem uma consequência muito grande”, cobrou. Ele lembrou que a agência já possui entendimento formado pela permissão para uso medicinal.
Fux ainda alertou para o crescente aumento das concentrações de THC, princípio ativo entorpecente, nas amostras de maconha recreativa em circulação no Brasil, o que intensifica os problemas de saúde pública decorrentes da circulação da maconha. Ele também chamou atenção para a falta de instrumentos públicos de fiscalização e controle em caso de legalização da venda, e citou que existem projetos no Congresso Nacional para resolver essa questão e propondo a distinção entre usuário e traficante não com base em quantidade, mas em rastreabilidade da droga.
Ao mesmo tempo, ele concorda com Toffoli que, na Lei de Drogas, as penas estabelecidas são de natureza administrativa, e não penal. Com isso, ele se soma à maioria formada de que o usuário não deve ser criminalizado, mas também discorda do estabelecimento de uma quantidade de maconha a ser presumida como para uso pessoal.
Por fim, se somou a Toffoli, Zanin, Mendonça e Nunes, por manter o entendimento pela constitucionalidade da Lei de Drogas. “Genericamente, sinceramente, não tenho quietude de alma para decidir isso. Por isso, com vênia a todos os colegas que trouxeram votos extremamente profundos e brilhantes, para considerar constitucional o Art. 28 [da Lei de Drogas]”.
Voto de Cármen Lúcia
Cármen Lúcia abriu seu voto esclarecendo seu entendimento, tal como firmado pela maioria, de que a interpretação correta da Lei de Drogas é a de que usuários não podem ser punidos criminalmente, apenas administrativamente. “O usuário não pode ser tratado como criminoso, pois é na verdade dependente de um produto, tal qual o dependente de álcool, tranquilizantes, cigarro e outros”, argumentou.
Apesar de concordar que o objetivo da Lei de Drogas é constitucional, Cármen Lúcia alertou que, na forma como está redigida, a legislação cria um resultado inconstitucional. “O legislador teria retirado a natureza penal e deixado apenas o ilícito administrativo. Nesse quadro, portanto, os juízes não tendo havido a definição específica desse critério, os juízes, o Ministério Público e as polícias, passaram a viver um cenário de arbítrio. A ausência de lei levou a este cenário a qual se poderia ter exatamente a escolha do critério, e a escolha do critério foi a droga apreendida e a quantidade segundo preconceitos daquele que prendia, daquele mesmo que julgava”, argumentou.
Em seu voto, a ministra concordou com a aplicação somente de penas administrativas ao usuário, e com a definição da quantidade de 60g de maconha, ou seis plantas fêmeas, até que o Poder Legislativo traga uma nova quantidade a ser definida em lei, ou definição específica das agências reguladoras do Executivo.