Mario Nunes Maia *
No dia a dia de um município brasileiro, notadamente quando de pequeno porte, como em geral são os situados no interior dos estados do Nordeste, as relações entre o juiz de Direito e o prefeito municipal são quase sempre cooperativas e amistosas. Mas isso não impede que vez por outra, em algumas comunas, surjam rusgas e tensões entre essas duas autoridades, muitas vezes por causa da execução de políticas públicas que desbordam dos padrões de regularidade e exigem a intervenção judicial corretiva, sob provocação, quer do MP que de outro legitimado.
É evidente que o primeiro e o mais relevante dever do juiz de Direito é o de assegurar às partes que entram em litígio judicial igualdade de tratamento, coisa que nem sempre é bem compreendida por quem exerce altas funções públicas, como a de prefeito municipal. Por outro lado, é de impressionante frequência a promoção de ações sancionadoras contra os gestores, como também ações populares, acarretando exposição deletéria da administração municipal e gerando possíveis confrontos entre os atores dessas ações, inclusive o prefeito municipal.
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Claro está que o juiz de Direito não pode voltar as costas a essa realidade, como também não deve acolher sem ponderada e criteriosa reflexão os pedidos de ações sancionadoras ou de iniciativas populares, por exemplo.
Não se pode esquecer que essas duas autoridades são, em certo sentido, as mais fortes presenças do poder estatal na comunidade municipal e para elas se voltam as atenções e os olhares de todos, desde os mais importantes membros da elite local até os mais simples e modestos cidadãos. Aliás, nos dias correntes, a tendência é essa distinção ceder até o desaparecimento, mormente em razão das atuais redes sociais que têm o poder de congregar todos numa só cruzada, seja contra ou seja a favor de quem quer que seja.
Pois bem. O primeiro dever do juiz de Direito será assegurar a paridade de armas nas disputas judiciais, entendendo que o prefeito municipal, quando acionado em juízo, não dispõe daquelas imunidades de que outrora desfrutava. Mas o prefeito é escolhido democraticamente pelo povo e essa circunstância não está presente na investidura do juiz, a não ser por via que se diz indireta.
A investidura do juiz é cercada de um certo mistério, porque ele é designado para julgar as questões de uma comunidade de cidadãos a cujo respeito ele não dispõe de informações sobre as suas vidas e relações, os seus costumes e a sua história, os seus hábitos e as suas esperanças. Já o prefeito não, ele é eleito pelo povo e tem afinidade e proximidade com os munícipes.
O juiz deve entender que o prefeito detém uma forma de legitimidade de investidura que deriva do voto popular. E o voto popular é a maior manifestação da soberania da comunidade política, que deve sempre ser rigorosamente preservada.
O segundo dever do juiz de Direito penso ser o de filtrar com rigor e até mesmo especial severidade avaliativa os termos e as condições das iniciativas processuais, sobretudo quando se trata de pretensão sancionatória contra o prefeito municipal, atentando-se para a qualidade de sua investidura, como mencionado.
A flexibilização das garantias jurídicas e processuais sempre será um tremendo desastre para a justiça e para o processo, mas quando se trata de medidas restritivas de direitos de agentes públicos eletivos, essa flexibilização pode atingir níveis de extrema prejudicialidade, muitas vezes impossibilitando a restauração da situação precedente.
Penso que posso mencionar que o terceiro dever do juiz de Direito é sempre lembrar, na sua relação com o prefeito, que o gestor do município não se acha no Judiciário, por isso o juiz deve abster-se de interferir na administração, a não ser quando provocado em forma regular.
O juiz não é o censor do prefeito e este dispõe de margem de atuação discricionária, sendo o único avaliador da oportunidade e da conveniência da prática de certos atos administrativos, que não cabem na moldura dos poderes judiciais. E isto é um dogma da Democracia representativa, desde as propostas do famoso Barão de Montesquieu, na segunda metade do século 18, conhecido como dogma da separação de poderes.
A compreensão dessa separação pode levar o juiz de Direito àquela atitude filtradora antes mencionada, passando a controlar com a maior intenção seletiva as ações que visam a atingir a pessoa do prefeito municipal ou a sua administração, quer partam do MP (ações sancionadoras penais ou de improbidade, por exemplo), quer partam de algum cidadão (ação popular, por exemplo).
Numa observação geral, pode-se dizer que o dever do juiz – e não apenas com relação ao prefeito – consiste em evitar e coibir que se instalem demandas opressivas, ou seja, aquelas que têm o propósito de afligir os promovidos, com a judicialização de demandas predatórias ou ações penais investigatórias, como são as que não amparadas em elementos sérios e coerentes colhidos na fase administrativa do inquérito policial/administrativo.
A promoção de ações temerárias, além de configurar litigância de má fé, também configura assédio processual. E esse assédio processual é algo que desgasta a relação judicial e deixa o Poder Judiciário exposto a situações indesejáveis. Incumbe ao Juiz impedir o desenvolvimento de tais promoções, embora não raras vezes a sua postura possa ser alvejada com insinuações de toda ordem e mesmo imputações de ilícitos.
Outra prática que se alastra e desgasta a Justiça é a atuação desenfreada e também predatória das redes sociais, geralmente mais afeitas à divulgação de meros informes sem lastros de verdade. Isso tem contribuído para criar uma espécie de circus maximus, com espetáculo estrondoso, como já fora denunciado pelo jurista italiano Francesco Carnellutti, no seu livro As Misérias do Processo Penal.
Cabe ao juiz controlar – e repelir – os abusos do poder de peticionar e também do poder de recorrer, a cujo respeito o jurista professor Paulo Henrique dos Santos Lucón escreveu breve monografia essencial – Abuso do Exercício do Direito de Recorrer – no qual analisa amplamente as causas dessa demasia, contemplando, inclusive, a conduta dos próprios advogados que fazem esforços para impedir o trânsito em julgado das decisões, mediante recursos abusivos.
Mas esses abusos não correm apenas na fase recursal dos processos judiciais, sendo pertinente se falar, também, em abuso do direito de denunciar, o que se verifica não apenas na seara cível, senão ainda na seara penal e na administrativa, sobretudo na repressão aos atos de improbidade.
A grande usina geradora desses abusos – penso eu – está localizada no pensamento legalista e positivista que tem formado o jurismo ocidental, apregoando sem pudor a chamada flexibilização das garantias jurídicas, o que tem levado muitos julgamentos a verdadeiros e clamorosos trucidamentos e destruição de reputações.
O egrégio Conselho Nacional de Justiça está atento ao surgimento desses fatores perturbadores do justo exercício da jurisdição. O seu presidente, o eminente ministro Luiz Fux, não economiza esforços para rebater a eclosão desse estado de coisas, tanto que já se editou normativo do CNJ com esse específico fim.
Todas essas reflexões deságuam no grande estuário da ponderação no exercício de qualquer poder, o de peticionar, o de recorrer, o de julgar e qualquer outro. A ponderação é o nome atual da justiça dos julgadores. Essa ponderação é o que pode levar o juiz a entender que a sua função não é administrativa e nem correicional ou consultiva do prefeito, mas se desenvolve sob as garantias jurídicas e sob as presunções constitucionais que resguardam os conceitos, a boa fama, a liberdade e a probidade das pessoas.
* Mário Nunes Maia é conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, advogado e autor de Hermenêutica Judicial, entre outros cinco livros jurídicos.
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