Desde a aposentadoria de Marco Aurélio Mello, em julho do ano passado, cabe a Gilmar Ferreira Mendes uma posição protocolar, mas que, a cada dia, atrai mais holofotes: o de decano do Supremo Tribunal Federal (STF). Atualmente o ministro mais antigo da corte, Gilmar Mendes tomou posse há 19 anos, em junho de 2002, e é conhecido por um vasto conhecimento jurídico e traquejo nas articulações entre os três poderes, algo que domina como poucos de seus pares. Este tirocínio poderá ser útil até pelo menos 2030, enquanto ocupa a cadeira de ministro mais experiente da corte.
Até pouco tempo, o posto de decano pouco servia na corte para além de mesuras e deferências. Com a ascensão de Celso de Mello ao decanato, que ocupou de 2007 até o ano passado, a voz de quem ocupa esta posição passou a carregar uma força simbólica capaz de conversar com todos os ministros da corte e levar ao presidente do tribunal uma resposta institucional em nome da corte. Deste modo, a atuação do decano ganha destaque em um cenário de crise instalada entre os poderes e pressões sem precedentes sobre o Supremo.
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Professores que estudam o STF e a atuação da corte na sociedade brasileira argumentam que Gilmar Mendes chega a este momento da carreira com um tribunal unido como poucas vezes se viu antes, onde apenas a coesão dos onze ministros pode garantir o futuro do tribunal. Gilmar, no entanto, não tem o histórico de ser aquele que unirá todos os lados do tribunal – e é difícil dizer, hoje, como ele passará a atuar amanhã.
“Sem dúvida, é um ministro que entende como funciona a política, que tem boas relações com diversos atores político – e tem sobretudo um olhar muito sensível ao ponto de vista interno das contingências políticas do Congresso e do Executivo”, resume o professor Diego Werneck Arguelhes, do Insper. Na avaliação dele, isso tem origem na “experiência de vida”. Antes das duas décadas de Supremo, Gilmar foi advogado-geral da União, na gestão Fernando Henrique Cardoso, assim como Dias Toffoli foi AGU de Lula e André Mendonça, indicado ao cargo de Marco Aurélio, o foi de Bolsonaro. “Esse tipo de conhecimento encontra lugar no Supremo, e isso não é ruim.”
O Supremo está, em 2021, na sua situação mais sensível desde a redemocratização do Brasil, em 1988. Em 2018, durante o julgamento de Lula, um tweet do general Vilas Bôas cobrou a punição do ex-presidente pela corte. Hoje, os ataques diários do presidente Jair Bolsonaro à corte chegaram às vias de fato, com pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes ao Senado, feito de próprio punho. A militância bolsonarista já chegou a protagonizar atos de “ataque simbólico” contra a corte em 2020, com a extremista Sara Geromini comandando uma caminhada com tochas em chamas contra o prédio do tribunal.
Este, no entanto, manteve a guarda alta: com os inquéritos que apuram atos antidemocráticos e contra as fake news promovidas contra a corte, o STF conseguiu desarticular parte de uma rede de influenciadores, empresários e políticos montada para tirar a credibilidade da corte – esta rede, em sua maioria absoluta, tem laços estreitos com o bolsonarismo. Com pessoas pedindo a prisão e destituição de ministros ou mesmo o fechamento do STF, poderá cair no colo de Gilmar Mendes dar repostas duras, assim como Celso de Mello o precisou fazer em alguns momentos, no ano passado.
Apesar de ser um articulador mais hábil do que foi Celso de Mello, argumenta Diego, Gilmar Mendes tende a ser mais próximo de Marco Aurélio – cuja postura gerava dissensos dentro da própria corte. “É difícil imaginar que a posição de decano vá transformar a maneira do ministro Gilmar Mendes de atuar, e transformá-lo no que ele não é”, argumenta. “É um ministro muito conflitivo, e não se pode dizer dele o que eu disse do Celso de Mello, um ministro que ficava numa espécie de planalto, equidistantes das disputas com outros ministros.”
À mesma conclusão chega o professor da FGV Rio, Thomaz Pereira. “É possível que ele siga esse caminho, mas para ele fazer isso, ele tivesse de deixar de ser o Gilmar Mendes que conhecemos – o ministro que, por vezes, toma posições no qual ele entra em conflito, e passa a ser um dos polos de conflito no tribunal”, pondera o professor.
Conflitos envolvendo Gilmar Mendes na corte são pródigos – ainda em 2009, ouviu o então ministro Joaquim Barbosa acusá-lo de manter “capangas” no Mato Grosso. No caso da Lava Jato, o mais influente dentro da corte na última década, Gilmar se tornou um conhecido “garantista”, como é conhecida a ala de ministros que prezam, em primeiro lugar, pela garantia de direitos e pela minimização de punições.
Parte da sociedade passou a criticar Gilmar por suas decisões soltando pessoas investigadas e por vezes julgadas por crimes. Após o escândalo da Vaza Jato, Gilmar passou a criticar abertamente a operação, e foi uma das vozes mais eloquentes nos casos que inocentaram Lula na corte. A decisão antagonizou seu papel com o de outro ministro, Luís Roberto Barroso, com quem possui rixas mais antigas.
Thomaz Pereira acredita que Gilmar Mendes, por ter sido líder interno de alguns diversos conflitos, pode ter dificuldades para unir a corte. “É meio difícil falar como se fosse uma voz acima destes conflitos”, explicou. “Ele não ser percebida como alguém que fala de maneira neutra no tribunal dificulta que ele seja visto acima destas disputas.”
O professor aponta, no entanto, um caráter que não permite ainda garantir que o papel de Gilmar Mendes será este ou aquele. “Um decano não se torna um decano simplesmente porque o decano anterior se aposenta e a tocha para o próximo mais antigo – formalmente isso é o que acontece. Mas um decano se constrói”, aponta Thomaz Pereira.
“A gente vai ver, no decorrer dos próximos anos, durante este conflito, em momentos de maior pacificação e futuras crises que talvez aconteçam que a gente irá ver a construção de um possível Gilmar Mendes como decano do tribunal. Não dá para dizer que ele necessariamente ocupar este papel – para isso acontecer, ele teria de deixar um papel que imagino que lhe seja caro – que é o de líder de certas posições dentro do tribunal”, diz, antes de concluir. “Não dá para ele ser as duas coisas”.
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