Vivemos em um momento histórico no qual, cada vez mais, vemos as máquinas assumindo a realização de atividades antes exercidas por homens. Esse movimento é guiado por um anseio não só por diminuição de custos, padronização e rapidez nos processos de trabalho, mas também por uma busca incessante pela perfeição. Paradoxalmente, um anseio tipicamente humano, agora terceirizado para as máquinas. Ainda no século 18, a revolução industrial marcou um momento histórico no qual as máquinas assumiram grande parte da tarefa artesanal. No século 21, as máquinas flertam com um dos nichos que ainda restavam preservados aos homens: os processos cognitivos e decisórios.
A forma de decidir do homem já é conhecida há bastante tempo e segue um padrão incrivelmente previsível desde o nosso nascimento. Observamos o mundo, categorizamos (a partir das nossas crenças pessoais) as informações recebidas e as transformamos em algoritmos, que nada mais são do que fórmulas matemáticas (conscientes ou inconscientes) que culminam com um resultado. Uma criança decide, assim, se um grito a levará a obter o brinquedo ou se a conduzirá a uma punição. Com os operadores do direito, o processo não é diferente. Vamos acumulando leituras, pesquisas e observações diversas, aliamos tudo à nossa compreensão de mundo, e, automaticamente, começamos enquadrar os fatos nas normas, de forma a tomarmos decisões acerca de sucesso ou fracasso de pretensões.
Leia também
Assim como houve um momento em que as máquinas substituíram os humanos porque podiam desempenhar com mais precisão e velocidade os processos braçais repetitivos, hoje questiona-se se as máquinas podem substituir os humanos em processos cognitivos/decisórios. Certamente já se sabe o suficiente sobre esses processos para se ter certeza de que eles são organizados por padrões. Serão as máquinas capazes de repetir tais padrões cognitivos assim como reproduziram com fidelidade (e superioridade) os padrões de trabalho braçal?
Embora o uso da inteligência artificial já esteja disseminado em outras áreas do conhecimento (como saúde, mercado financeiro, educação, agricultura e cultura), apenas há poucos anos começou a ser discutida dentro do Direito. Afinal, a percepção de que as decisões jurídicas poderiam ser substituídas por sistemas despidos de humanidade não é algo especialmente lisonjeiro ou confortável na nossa área. Mas a tecnologia não tem esse tipo de escrúpulo. Há alguns anos, a IBM desenvolveu o programa Watson e demonstrou que ele poderia ser superior aos médicos no diagnóstico de doenças. Não demorou até que o programa ganhasse uma versão jurídica capaz de superar os juristas no domínio de precedentes judiciais.
Atualmente, sistemas de inteligência artificial vêm sendo usados na advocacia privada para a análise da chance de sucesso ou não de uma pretensão durante uma triagem de potenciais causas, para a formatação de uma petição ou sustentação oral, a partir da percepção do julgador a quem o feito foi distribuído, e, até, para o atendimento ao cliente.
Na Advocacia Geral da União (AGU), o sistema adotado para produção de peças e pareceres já utiliza ferramentas de inteligência artificial para automatização de rotinas, sugestão de modelos e armazenamento de repositórios de teses, doutrina e jurisprudência para inclusão nos documentos conforme o tipo de processo e a temática abordada. No poder Judiciário, embora ainda de forma incipiente, eles estão presentes como plataformas de apoio à decisão com base em precedentes. Apesar da fase inicial de integração entre inteligência humana e artificial, o viés é claro: tudo indica que haverá uma progressiva assunção das funções humanas pelas máquinas.
Pode-se dizer que estamos presenciando uma nova revolução, por meio da qual outra gama das atividades (antes consideradas) humanas serão absorvidas por máquinas capazes de desempenhá-las com maior eficiência. Não cabe a nenhum de nós (juristas ou de outras profissões) impedir esse processo de avanço da inteligência artificial ou mesmo controlá-lo. A tecnologia evolui progressivamente e assim caminhamos para a transferência de muitas de nossas tarefas.
Enquanto observamos o processo, devemos tentar encontrar formas de permanecer integrados nessa nova dinâmica que se está a construir. Mas, principalmente, devemos aproveitar a oportunidade para nos perguntar o que existe de efetivamente humano nas nossas atividades. Porque dentro de algum tempo, esse pode ser o último campo que reste para a nossa atuação.