Dia desses fui a uma formatura. Linda a cena de cada novo profissional prometendo, de pé e solenemente, ser um verdadeiro sacerdote ao longo da carreira.
É assim, quase sempre com o coração puro de uma criança, que começamos as nossas caminhadas. E aí começam a chegar os primeiros clientes, segurando com as mãos os seus problemas ou direitos doentes e raquíticos.
Estes primeiros pacientes são afortunados! Com que carinho nos debruçamos sobre os casos deles! Lemos e relemos cada documento, e pesamos criteriosamente todas as circunstâncias a fim de que nosso diagnóstico seja absolutamente preciso.
Nestes primeiros dias nós até recebemos as famílias dos nossos clientes, e pacientemente as ouvimos e até confortamos, se for o caso. Terminado o expediente diário, deixamos nossos locais de trabalho com a alma leve de quem passou o dia a recitar uma linda oração.
Mas eis que os dias vão se passando, e o desfile das misérias humanas não diminui – pelo contrário, só aumenta, juntamente com o nosso torpor. Decorridos alguns meses, a angústia do próximo passa a ser cada vez mais apenas uma rotina desconfortável, desagradável ao espírito e aos sentidos. Lentamente, sem que o percebamos, passamos a ser vítimas daquele que Ralph Waldo Emerson definiu como “o pior veneno”: o tempo!
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É assim que passamos a estudar cada caso com atenção cada vez menor, e quanto mais experientes mais delegamos tarefas a auxiliares que não tem experiência alguma, em uma total inversão de lógica. Atender familiares? Para quê? Afinal, o passar dos anos transformou o ato de ouvir as expressões de ansiedade e angústia deles em uma mera perda de tempo – ficamos importantes demais para isso.
Na maior parte das vezes, passamos a só nos dar ao trabalho de alguma pesquisa mais extensa quando nos deparamos com algum daqueles casos polêmicos. Assim, quando se trata de impor um remédio amargo a alguém importante, cercamo-nos de todas as precauções – aliás, não raramente pesquisamos tanto que acabamos encontrando uma maneira de resolver o problema sem ministrar remédio amargo algum.
Já quanto aos miseráveis, o tempo que dispensamos aos casos deles costuma ser inversamente proporcional à duração de nossas carreiras. Assim, em seguida às expressões “a situação é conhecida”, “trata-se de um quadro comum” ou “é mais um daqueles casos” não raramente seguem-se remédios amargos, daqueles que causam dor e sofrimento durante anos a fio.
Encerrado o expediente, deixamos os nossos gabinetes e escritórios já não mais com aquela alma leve dos primeiros dias, mas com uma sensação estranha de alívio por estarmos saindo daquela passarela na qual desfilam as mais pungentes misérias humanas.
É diante desta realidade que talvez fosse oportuno mudarmos nossos tão solenes juramentos.
Que tal prometermos, simplesmente, em nossos corações, sermos pessoas não só de bem, mas também do bem por toda a vida? Que tal nos comprometermos a receber e atender, ao longo de nossas carreiras, cada miserável, cada pessoa atormentada por problemas, que bater à porta dos nossos gabinetes ou escritórios? Que tal, finalmente, jurar que tentaremos, pelos tortuosos caminhos da vida, reduzir ao máximo nossos “momentos de Pilatos”? Por favor, não juremos que não teremos deles – a vida não nos permitirá tamanho luxo! Mas que não sejam muitos, eis algo que humana e honestamente poderíamos cobiçar e prometer nestas noites de formatura.
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