por Marcos A. C. Secco*
O caso Marielle Franco reacende a discussão da desvinculação dos Órgãos Centrais de Perícia de Natureza Criminal, conhecidos como Perícia Criminal ou Polícia Científica, dos órgãos de investigação policial como sendo um elemento crucial para a produção de prova isenta, sem vieses de confirmação ou defesas de teses investigativas.
Esse trabalho técnico, baseado na ciência, garante a imparcialidade e eficiência na investigação de crimes na busca da autoria e dinâmica dos fatos. A subordinação do perito oficial ao chefe da investigação pode pôr em suspeição a atuação de todo o órgão pericial e comprometer a qualidade das investigações, prejudicando a busca pela verdade e pela justiça.
Este artigo discute a importância da desvinculação da perícia oficial de natureza criminal das Polícias Civis, usando o caso da vereadora Marielle Franco como exemplo, e destaca a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na ação decorrente do caso da Favela Nova Brasília no Rio de Janeiro decorrente do descaso também com a perícia.
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O caso Marielle Franco
Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL, e Anderson Gomes foram assassinados em março de 2018. O caso levantou questões sobre a relevância da subordinação dos peritos oficiais ao chefe da investigação, principalmente após as informações de que o carro onde foram assassinados ficou exposto sob o sol e chuva sem os devidos cuidados para preservação dos vestígios que nele pudesse existir, numa delegacia por 41 dias até ser encaminhado ao Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE).
Em um órgão desvinculado, isso não ocorreria, pois, a partir do momento que foi solicitado a realização de exames, já no local de crime, havendo a necessidade de exames complementares, o veículo seria removido e armazenado de forma correta no órgão pericial, sem ter que passar por uma delegacia e correr o risco da perda dos vestígios que nele pudesse existir. Pois, a demora na análise da prova do crime (o carro) dificulta todo e qualquer exame pericial que fosse possível realizar à época do ocorrido, seja no momento do exame no local do crime e/ou nos dias imediatamente posteriores com as devidas ações para a sua preservação.
PublicidadeO caso foi atendido por uma equipe da divisão especializada em investigar homicídios que, por dever de ofício, deve conhecer o Código de Processo Penal (CPP), em especial o artigo 158 que trata da preservação de local de crime e cadeia de custódia, fundamental para a efetividade na realização dos exames periciais.
Algumas perguntas pairam pelo ar, por exemplo, quais os motivos dessa demora de uma equipe especializada e conhecedora do artigo 158 do CPP? Como perder imagens de exames periciais de câmera digital de um órgão responsável por perícia, havendo nela, uma seção de informática especializada em recuperar imagens apagadas? Para responder a essas perguntas é importante citar como era e é a estrutura do órgão responsável pelas perícias oficiais de natureza criminal no estado do Rio de Janeiro.
Era uma Diretoria Geral de Polícia Técnico Científica (DGPTC), subordinada à Polícia Civil. A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro foi subordinada à Secretaria de Segurança Pública até 2019, quando foi transformada em Secretaria de Polícia Civil – SEPOL, após a extinção da secretaria de segurança pública.
O delegado Rivaldo Barbosa, preso por suspeita de envolvimento no crime, tornou-se chefe de Polícia Civil em 2018, estando antes à frente do Departamento Geral de Homicídios do Estado. Ao assumir a chefia de polícia, alçou uma delegada de sua equipe da especializada em investigações em casos de homicídios à diretora da DGPTC, na época o órgão máximo da Perícia Oficial do Estado. Com a mudança na Lei Orgânica da SEPOL, em junho de 2022, foi criada a Superintendência Geral de Polícia Técnico Científica (SGPTC), atualmente dirigida pela mesma delegada responsável pela DGPTC no período em que Rivaldo Barbosa era chefe de Polícia Civil.
No relatório da PF indica que assim como o caso de Marielle existem diversas investigações que estão paralisadas, será que devido ao mesmo modo operandi, mesmo descaso?
A Condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
O Brasil foi condenado em fevereiro de 2017 pela CIDH por violações de direitos humanos ocorridas na Favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro. A condenação se refere à violação do direito à vida e à integridade pessoal de 26 homens e 3 mulheres durante operações policiais realizadas na favela em outubro de 1994. A sentença destaca a falta de investigação adequada e a violação das garantias do devido processo e ainda, determina que os órgãos responsáveis pela perícia criminal sejam independentes das polícias.
A CIDH determina ainda ao Brasil separar a Polícia Científica das demais Polícias, em especial da Polícia Civil, conferindo autonomia aos Peritos Oficiais de Natureza Criminal. Caso isso tivesse sido feito, a perícia do carro em que Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados não tivesse demorado tanto e teriam sido adotados os procedimentos técnicos para preservação adequada do local do crime (o carro), o que contribuiria para maior agilidade no andamento das investigações.
Proposta de Emenda à Constituição nº 076/2019
Com parecer favorável da senadora Professora Dorinha Seabra (União-TO), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 76/2019), em discussão na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal, insere a “Polícia Científica” no artigo 144 da Constituição Federal. A aprovação dessa PEC permite aos Estados e ao Distrito Federal promoverem a desvinculação dos órgãos centrais de perícia oficial de natureza criminal das Polícias Civis.
A medida, por já existirem em todas as unidades federativas, padroniza a nomenclatura dos Órgãos Centrais de Perícia Oficial de Natureza Criminal em nível nacional como Polícia Científica, nome esse utilizado em publicações desde 1910 e definido através dos debates junto à Associação Brasileira de Criminalística (ABC) e ao Conselho Nacional de Dirigentes das Polícias Científicas (CONDPC).
A aprovação desta proposta vai ao encontro e contribuirá para o cumprimento da sentença imposta ao Brasil no julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos no âmbito da ação do caso Favela Nova Brasília. Além disso, permite ainda o atendimento direto pelos órgãos de perícia aos demais órgãos de segurança, Ministério Público e Judiciário, sem ter que passar pelas Polícias Civis, promovendo assim, economicidade e eficiência.
Conclusão
A desvinculação dos órgãos centrais de perícia oficial de natureza criminal é fundamental para garantir investigações criminais imparciais e eficientes, evoluindo a persecução penal. O caso de Marielle Franco e a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos destacam a necessidade de reformas no sistema de justiça criminal do Brasil e a aprovação da PEC 76/2019 é um passo importante nessa direção. Afinal, interessa a quem a manutenção da subordinação dos Órgãos Centrais de Perícia Oficial de Natureza Criminal às Polícias Civis?
* Marcos A. C. Secco é presidente da Associação Brasileira de Criminalística (ABC)
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