Errar é humano. E o juiz, mesmo no trono de sua autoridade, não passa de um ser humano. Por essa razão não é raro o erro judiciário.
Não é por outro motivo que o Judiciário, por imposição constitucional, é estruturado em instâncias hierárquicas. Só assim se pode garantir ao cidadão, numa causa de seu interesse, a possibilidade de revisão, por uma instância superior, da decisão monocrática do juiz singular de primeira instância. Assegura-se desse modo a correção de eventual erro no primeiro julgamento.
É que, como o Judiciário, numa democracia, inclusive nas questões que envolvem os outros Poderes Públicos, é que dá a última palavra, sua sentença não pode em hipótese alguma fundar-se no erro, devendo sempre, pois, além de ter base na verdade, traduzir invariavelmente a justa medida, numa equação que leve em conta, e com cuidado da transparência, todas as versões sobre o fato jurídico sob exame.
Aliás, tamanha é a importância para toda a humanidade da mais justa e correta decisão judicial sobre questões envolvendo o interesse de cada cidadão, que o direito à revisão de julgamentos sempre por mais de uma instância judicial é consagrado por convenções internacionais reguladoras de direitos humanos.
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No campo do Direito Penal, por exemplo, o erro pode ser fatal à liberdade e à própria vida do cidadão. Por isso mesmo, qualquer dúvida no processo-crime deve favorecer o réu e não o Estado acusador. Tanto que, no dizer de Voltaire, melhor correr o risco de absolver um culpado do que condenar um inocente.
Como, entretanto, a revisão de determinado julgamento de um juízo singular por outro juízo igualmente singular não garante melhor resultado, convencionou-se há séculos em todo o mundo que o tribunal de revisão deve ser constituído por um colegiado de pessoas qualificadas e experientes que, depois da sustentação oral da tese dos interessados por seus legais representantes, façam o indispensável debate acerca de todas as teses suscitadas, de modo a chegarem se possível a uma conclusão mais acertada do que a revelada pelo julgamento de primeiro grau.
Esse regime de redundâncias é que, se não elimina de vez o erro judiciário, ao menos reduz a sua ocorrência.
Cuida-se, aliás, de critério observado há séculos.
É certo que os tempos são outros. E a partir da regulamentação do processo judicial digital, passou o Judiciário a admitir atos virtuais, inicialmente por meio de peticionamentos, intimações, publicações e consultas. Depois, durante a pandemia da Covid-19, passou a permitir a realização das chamadas sessões telepresenciais, que acabaram se tornando frequentes.
Acabada felizmente a pandemia, todavia, era para o Judiciário retomar a realização de atos presenciais, tal como ocorreu com órgãos do Executivo e do Legislativo.
Entretanto, os eminentes ministros do STF, acostumando-se, ao que tudo indica, com a possibilidade de evitar a exposição em casos polêmicos e rumorosos, tornaram as sessões telepresenciais corriqueiras, mesmo em situações em que as sessões presenciais parecem necessárias ou no mínimo recomendáveis. E, em seguida, considerando que, onde já havia passado um boi poderia passar a boiada, resolveram, lastimavelmente, instituir no cotidiano o julgamento pelo chamado plenário virtual, uma aberração, data vênia, que jamais poderia ser admitida e não contribui em nada para a credibilidade judicial.
É que todo ato judicial deve ser público e fundamentado, respeitando os princípios norteadores dos atos dos Poderes Públicos, a saber: legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência.
Recente comunicado de um dos ministros do STF à imprensa, em resposta a reclamações de advogados, afirma que o plenário virtual teria trazido mais eficiência às decisões da Corte.
Com todo o respeito, não é verdade.
Em primeiro lugar, ao contrário do que assevera o referido comunicado, a última coisa que há no julgamento pelo plenário virtual é a colegialidade.
Ora, como no plenário virtual cada julgador profere o voto no seu isolado reduto profissional ou residencial, remetendo-o ao sítio virtual correspondente, não há nesse ato a indispensável publicidade. De fato, cada voto deve ser necessariamente público. Além disso, não há debate entre os integrantes do colégio acerca dos fundamentos destacados pelas partes. E não basta que, eventualmente, um juiz entre em contato com outro ou outros para discutir o tema a ser julgado, sob o véu do bastidor desse ambiente invisível. Esse ato há de ser também público por exigência constitucional.
Há, aí, pois, não um julgamento colegiado, mas um amontoado de votos não manifestados claramente e, portanto, desconhecidos, que fazem aparecer nos autos, como num passe de mágica, uma decisão pronta, com o registro de suposta maioria ou unanimidade. Se houve realmente o que a tela do computador registra, ninguém sabe, ninguém viu, porque faltou ao rito a obediência ao princípio constitucional da publicidade.
Forçoso convir que, a prevalecer o raciocínio de que o julgamento nos tribunais colegiados pode ser assim realizado, com todas as vênias, poderiam então até ser extintas as cortes de revisão, com grande redução de custos para o Estado. A colegialidade dos tribunais, pois, poderia ser substituída por um algoritmo que cruzasse os dados do banco de sentenças monocráticas de primeiro grau para chegar-se ao pensamento da maioria dos juízes e, assim, a uma sentença de revisão, sem que nunca tivesse existido um julgamento realmente colegiado.
Aliás, o julgamento de conflitos sociais ou individuais por órgãos colegiados do Judiciário inspirou-se nos instrumentos da antiga democracia grega, como a Helieia, assembleia que, entre outras atribuições, funcionava como suprema corte de justiça. E, como se sabe, assim se chamava por se realizar sob a luz do sol, ou seja, em público, com toda a transparência solar. E nela, como em seus órgãos fracionários (a Bulé, por exemplo), seus integrantes só votavam depois de ouvirem pelo tempo necessário e atentamente os melhores retores com suas teses e, mesmo assim, após intenso debate entre os próprios juízes. Fatos históricos, portanto, definem claramente o que seria um verdadeiro julgamento colegiado.
Como se vê, no julgamento do denominado plenário virtual não há colegialidade.
Eficiência, de outro lado, só existiria com a obediência, no julgamento, aos ritos constitucionais e legais e a produção de uma sentença que considerasse os argumentos das partes interessadas por meio de participação efetiva dos advogados com a indispensável sustentação oral acerca dos fundamentos da causa sob julgamento. E mais: com a presença das partes e advogados, reconhecido o seu direito de acompanhar, em tempo real, o relatório e cada um dos votos, até para, se o caso, suscitar questão de ordem com o objetivo de evitar equívocos materiais patentes que, como é do conhecimento geral, ocorrem frequentemente.
Outra justificativa daquele comunicado foi no sentido de que, enquanto as sessões colegiadas presenciais são limitadas às quartas e quintas-feiras, com a média de dois julgamentos por sessão, o plenário virtual teria aumentado significativamente a quantidade de decisões do STF.
Esse argumento, data vênia, é baseado na linguagem econômica da produtividade em escala, tendência atual que, infelizmente, faz prevalecer a vantagem numérica ou financeira sobre a ética e a equidade na prestação jurisdicional do Estado que, à evidência, muito ao contrário, deve fundar-se mais na qualidade e equidade do que na quantidade.
O já mencionado comunicado do eminente ministro à imprensa chega ao absurdo de asseverar que o plenário virtual é “absolutamente transparente e democrático”, pois a pauta, segundo alega, fica disponível com uma semana de antecedência, além de os advogados poderem encaminhar vídeo com sua sustentação oral.
Também não é o que demonstra a realidade. Não há no citado julgamento virtual, em verdade, a mais mínima transparência, apesar de exigida constitucionalmente.
O fato de o tribunal publicar a pauta de julgamento não atende ao princípio constitucional da publicidade, que deve abranger todo o julgamento, ou seja, a sessão deve iniciar-se e encerrar-se em público e, mesmo nas hipóteses de sigilo legal, as portas da corte devem ser abertas para as partes e, especialmente, para seus advogados, que têm o direito-dever de acompanhar em tempo real cada passo do julgamento, mesmo nos casos em que não se admite a sustentação oral.
É como se o tribunal publicasse o seguinte aviso: O julgamento daquele processo, na próxima quarta-feira, será secreto. Não venham que as portas estarão fechadas ao público. Aliás, nem os advogados das partes terão credencial para o ingresso no ambiente.
Esse desatino é inaceitável.
Não custa mencionar nesse ponto que as cortes de revisão no país, desde a edição do vigente CPC, que ampliou as funções do juiz relator, para autorizá-lo a negar provimento aos recursos principais no processo, passaram a fazer uma tão indisfarçável quanto cruel campanha para reduzir, a qualquer custo, o número de sustentações orais. Realmente, por meio de despachos monocráticos de relatoria, ao negarem provimento a recursos, convertem até apelações, recursos especiais e extraordinários em simples agravos internos, apenas e tão somente como artifício para justificar, em seguida, o indeferimento de sustentação oral pelos advogados das partes, incabível nesses agravos.
Mais uma vez com as devidas licenças, agem os juízes dos tribunais com a soberba dos príncipes da monarquia, como que ungidos à condição de divindades, logicamente não humanas, e alçadas a um trono tão superior que, pobres advogados, nada têm a acrescentar ao que já sabem.
De duas, uma: ou os advogados, em sua grande maioria, o que não é verdade, não sabem formular petições iniciais, interpor recursos adequados com o preenchimento de todos os requisitos legais e fazer sustentações orais acerca das teses suscitadas na demanda ou, então, o que é muito pior, a decisão do colegiado já estava tomada antes mesmo da sessão do julgamento, diante das cartas marcadas pelos mais poderosos na relação processual, o que se admite por mera hipótese apenas para argumentar.
Importante dizer, a propósito, que mesmo quando admitida a sustentação oral, os integrantes das turmas ou plenários, com muita frequência, não escondem nos gestos a patente intenção de desestimular a sustentação oral, em que pese legítimo instrumento da advocacia na defesa dos interesses do cidadão.
Se mesmo presencialmente os advogados não são ouvidos, como pretender o STF que acreditem eles que o juiz, antes do julgamento, abrirá mesmo o vídeo gravado de sua sustentação oral, enviado pela via digital, para examiná-lo em sua integralidade?
Aliás, a renitência ou até arrogância de integrantes de cortes colegiadas em rejeitar a sustentação oral dos advogados, para além de desrespeitar a essencialidade da advocacia na administração da justiça, ainda acarreta danos ao direito de ação e ao direito de ampla defesa ao cidadão pagador de tributos.
Também não se demonstra, pelo referido julgamento virtual, a obediência ao princípio constitucional da impessoalidade, visto que se tornaram estranhos os fatores que justificariam por vezes o pinçamento apenas de certos casos para serem julgados excepcionalmente em sessão presencial, sempre a critério subjetivo do relator, com o gritante comprometimento do princípio da isonomia com que deveriam ser tratados todos os jurisdicionados.
Ademais, não atende o tal julgamento virtual ao princípio constitucional da moralidade dos atos dos Poderes Públicos que, como é sabido, não devem apenas ser intrinsecamente honestos, devendo também parecer honestos. Ora, não pode parecer honesto o que parece clandestino, como o julgamento virtual. Acontece que, como voto é assinado e inserido no processo digital, por token, à distância, o integrante da Corte profere seu voto isoladamente ou no gabinete oficial ou no escritório de sua residência ou, sabe-se lá, se no escritório da parte ou terceiro interessado. Não é possível à parte ou ao advogado conferir o fato nesse simulacro de julgamento kafkiano.
Para concluir, o julgamento que respeita ao princípio da moralidade é o realizado em sessão presencial, num ambiente público, em que qualquer aproximação ou assédio de um interessado ou advogado da parte ao julgador, por exemplo, adquire maior e imediata exposição, submetendo-se à fiscalização geral. Cada palavra do julgador, além disso, é presenciada pela parte ou advogado e, conforme o caso, pela imprensa, de modo que incidentes suspeitos podem ser ao vivo detectados e, por isso mesmo, evitados.
Em outros termos, se esse estado de coisas suspeitas e anormais continuar, mais uma vez com todo o respeito ainda merecido, o Judiciário certamente cairá no absoluto descrédito e, então, um dos principais pilares da democracia ruirá no já enfermo Estado brasileiro.
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