Manoel Pastana*
Este caso precisa ser conhecido pelos profissionais e acadêmicos da área jurídica, bem como pelos cidadãos que se preocupam com a Justiça. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 8 de outubro de 2013, instaurou processo administrativo disciplinar contra o juiz federal João Bosco Costa Soares, que é honesto, mas tem o “defeito” de se preocupar demasiadamente com questões sociais. Ele está lotado na 2ª Vara Federal de Macapá (AP). Conheço-o, assim como os problemas sociais de Macapá, pois lá estive lotado por quatro anos, representando o Ministério Público Federal (MPF). O MPF é fiscal da lei e defensor da sociedade, nessas funções tive bastante trabalho naquela região, onde há muita corrupção e inúmeros problemas sociais.
Aliás, a prática de pagamento de mesadas a parlamentares, segundo documentos revelados recentemente, teve início em Macapá, no ano de 1999. O caso, chamado de mensalinho do Amapá (mesadas mensais de R$ 20 a R$ 100 mil, conforme a “importância” do parlamentar corrompido), foi arquivado pelo ex-procurador-geral da República Roberto Gurgel. Sem qualquer apuração, o dr. Gurgel optou pelo imediato arquivamento, aduzindo que os documentos só poderiam ser falsos.
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Ocorre que submetidos a exame por perito de renome nacional, a autenticidade dos documentos foi confirmada. O caso, que está vivo no Conselho de Ética do Senado, pode ser ressuscitado pelo atual procurador-geral da República, motivado pela confirmação da autenticidade. Caso o caso não fique no acaso, cabeça de gente “acima de qualquer suspeita” poderá rolar, a exemplo do que aconteceu com o ex-senador Demóstenes Torres. Esclareço que isso é apenas uma análise, diante dos documentos revelados e da fragilidade defensiva feita na tribuna do Senado. Tal defesa pode ser considerada quebra de decoro (faltar com a verdade), se for confirmado o esquema criminoso, o que é bastante provável, se houver apuração, bastando quebrar o sigilo bancário e fiscal dos suspeitos e de seus parentes.
Como o objeto da minha escrita não é falar do mensalinho do Amapá (falarei oportunamente), vamos ao que me fez escrever este artigo: o processo disciplinar instaurado contra o juiz Bosco Soares. Imputaram a ele atrasos nas audiências, excesso de audiências, chamamento ao processo de quem não é parte, descumprimento de decisão judicial com trânsito em julgado, atuação política e denunciação caluniosa.
Enfatizo que não farei a defesa, até porque o investigado é muito bem defendido por advogado constituído, mas apenas comentarei as acusações. Chamou-me a atenção que membros do MPF, ou seja, fiscais da lei, tenham representado disciplinarmente contra o mencionado juiz por atrasos a audiências. O primeiro erro diz respeito à generalização da acusação. Quando se atribui prática infracional a alguém, faz-se necessário dizer “quando”, “onde” e “como” ela foi praticada. Na representação consta apenas que o juiz Bosco se atrasava para as audiências, sem indicação dos feitos nos quais isso teria ocorrido. Ora, essa generalização, além de configurar inépcia, denota omissão por parte dos membros do MPF, signatários da representação. Explico a seguir.
PublicidadeO MPF é fiscal da lei, assim, ao constatar qualquer irregularidade, deve agir de imediato. Dessa forma, se é verdade que o juiz em questão se atrasava para audiências, por que eles não tomaram providência imediata, postulando a consignação em ata do atraso, para promoção de responsabilidade? O mesmo se diga em relação ao “excesso de audiências”. Marcar audiência faz parte da atuação jurisdicional do magistrado, cujo erro ou abuso deve ser corrigido por meio de procedimentos previstos na legislação, tais como recursos e correições parciais.
Lamento que alguns membros do MPF utilizem a representação disciplinar para “corrigir” ato jurisdicional, que deve ser feito pelos meios legais próprios. Seria o mesmo que um juiz representasse disciplinarmente contra um membro do Ministério Público (MP) por ingressar com muitas ações. Se o julgador entende que o ajuizamento das ações é indevido, deve utilizar os meios processuais adequados para repeli-las e não tentar disciplinarmente interferir na independência funcional do membro do MP. Da mesma forma o membro do MP não pode interferir na independência funcional do julgador por meio de representação disciplinar; caso entenda ilegal a atuação jurisdicional do juiz, deve buscar a correção pelos meios processuais e não por reclamação disciplinar.
Com efeito, se os membros do MPF que representaram contra o juiz Bosco entenderam que as audiências eram indevidas, por que não lançaram mão dos meios processuais próprios? A propósito, os “excessos de audiência” ocorreram em ações civis públicas nas quais o magistrado tem razoável liberdade na solução da lide. Nesse diapasão, o referido julgador buscou, por meio de audiências nas ações ajuizadas, resolver problemas sociais sérios (objetos das ações), obtendo resultados extremamente satisfatórios, que beneficiaram milhares de pessoas carentes.
Causou-me estranheza o fato de os membros do MPF, autores da representação, sequer fazerem parte da maioria das ações, palco das audiências, pois quem atuou foi outro membro do MPF, que não foi autor da representação, inclusive ele elogia a atuação do juiz Bosco, assim como eu e outros membros do MPF que atuaram no Amapá e conhecem o referido magistrado. E mais. Na ação que ocorreu a imputação mais grave, isto é, que o juiz Bosco teria desrespeitado decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, sequer o MPF participou, seja como parte ou como fiscal da lei. Foi uma ação de reintegração de posse em terreno da União, ocupado, há mais de dez anos, por cerca de 400 famílias extremamente carentes.
A União pediu a execução da reintegração, e o juiz ora processado, em vez de ordenar a desocupação da área, mediante o uso de força policial, pois as pessoas não tinham para onde ir e, portanto, teriam que ser tiradas à força, marcou audiência para buscar solução menos traumática. Várias autoridades foram convidadas para o evento e de lá saiu a solução: o governo local destinou outra área para construção de 5 mil residências populares e o governo federal disponibilizou recursos. Ao final, todos saíram ganhando, exceto o juiz Bosco, que “ganhou” um processo disciplinar para responder.
O caso é tão absurdo, chegando-se ao delírio de acusar o referido juiz de impor obrigação ao governador do Amapá (consta na representação: “O juiz proferiu decisão impondo obrigação pessoal ao governador do Estado do Amapá, que não era parte no processo”). Impressionou-me a imputação, pois feita por membros do MPF, que como defensores da sociedade, deveriam se juntar ao magistrado em busca de solução para a grave situação de pessoas carentes, que não tinham para onde ir. Em vez de agirem em prol do interesse social, os representantes, que sequer faziam parte do processo, se “preocuparam” com a integração à lide do governador do Amapá, que aderiu voluntariamente, convidado pelo juiz. A iniciativa do dr. Bosco resultou na solução pacífica e socialmente adequada do conflito.
A atuação do mencionado juiz em ações de interesse coletivo atrai o interesse da imprensa local e isso parece “causar ciúmes” a alguns. A aparição na imprensa, associada à busca de ajuda com agentes políticos para solução de problemas sociais, resultou na acusação de atuação política. Eu também sofri acusação deste tipo, pois quando estive lotado no Amapá, a imprensa divulgava frequentemente nosso trabalho, assim como o faz com o juiz ora processado. De outro giro, é impossível a solução de problemas sociais sem a ajuda de agentes políticos. Assim, como representante do MPF, procurei a ajuda de muitos deles, para solucionar problemas sociais, que enfrentava naquela longínqua região carente. O mais fácil seria omitir-me no conforto do meu gabinete, fazendo o “feijão com arroz”, sem me expor à ira de alguns, que nada fazem e procuram atrapalhar os que têm disposição e coragem para fazer.
Aparecer na imprensa, buscar soluções junto a agentes políticos com o escopo de solucionar problemas sociais e outras condutas análogas, não são atividades políticas vedadas. Aliás, conheço o juiz Bosco há mais de 15 anos e nunca ouvi dizer que ele pretenda se candidatar a algum cargo eletivo. O que eu sei é que ele tem grande preocupação em fazer justiça social e não mede esforços no sentido desse mister.
Na minha opinião, a conduta do referido magistrado está respaldada na independência funcional, que lhe permite agir de acordo com a sua consciência, balizada nos limites da lei. É dessa forma que eu sempre agi. O membro do MP e o juiz não são carimbadores de papéis. Possuímos independência funcional, por isso temos razoável margem de liberdade para atuar, é claro, dentro dos limites da lei. Não me parece, todavia, que a procuradora da República Damaris Rossi Baggio de Alencar, que encabeça a representação contra o juiz Bosco, tenha agido amparada na independência funcional, ao promover a gastança, juntamente com outros agentes públicos, de R$ 6 milhões provenientes de um termo de ajustamento de conduta (TAC).
O MPF ingressou com uma ação civil pública contra uma empresa de mineração que se estabeleceu no Amapá. No curso do processo, formulou-se um TAC, no qual a empresa se comprometeu a pagar R$ 6 milhões para pôr fim à demanda. Na cláusula quarta do TAC consta a necessidade de homologação judicial do ajuste e ainda que não houvesse tal cláusula, por razões óbvias, uma vez que o TAC tratava de demanda ajuizada, havia necessidade de homologação judicial, tanto que foi requerida a homologação.
Ocorre que o juiz Bosco achou pouco o valor de R$ 6 milhões, tendo em vista o empreendimento ser bilionário. Antes de decidir sobre a homologação, ele marcou audiência (eu disse: marcou audiência) com o escopo de obter da empresa mineradora maior compensação em prol das pessoas carentes da região, a serem afetadas pelo empreendimento. O MPF agravou a decisão, a audiência não se realizou e o processo ficou paralisado, desde 2008. Mesmo sem homologação, a empresa disponibilizou os R$ 6 milhões, sendo que a procuradora Damaris passou a “administrar” os recursos, transferindo-os para conta de diversos servidores públicos, para serem utilizados na compra de materiais para órgãos públicos.
Tratados como se fossem recursos privados, foram postergados os princípios da legalidade, da publicidade, da moralidade e outros princípios insculpidos na esquecida Constituição Federal. A coisa foi tão feia, que nem a cláusula sétima do TAC foi respeitada. Essa cláusula dispõe que o emprego de tais recursos seriam auditados e as contas prestadas à sociedade, mediante publicação no diário oficial. Nada disso foi observado.
Por causa da forma inusitada de agentes públicos administrarem recursos, em março de 2012, o juiz Bosco representou ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e à Procuradoria Geral da República (PGR). O CNMP, embora entendendo que a conduta não seria recomendável, não vislumbrou infração disciplinar, por isso, arquivou a representação, sem instaurar processo administrativo. Na PGR foi instaurado procedimento criminal, cujo resultado pode ser visto pelo inteiro teor no site do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, bastando pesquisar pelo nº 0029585-78.2013.4.01.0000. A instauração desse procedimento criminal obrigou a procuradora Damaris a apresentar prestação de conta dos recursos gastos. Para isso, tiveram servidores públicos devolvendo dinheiro, bens sido restituídos, apresentação de notas fiscais de duvidosa idoneidade, contrato de compra e venda de casa em área de preservação ambiental e outras “pérolas”, que renderiam várias ações de improbidades, se tais condutas fossem praticadas por algum prefeito.
Entre as justificativas para os gastos, tais como compra de notebooks, micro-ondas, TVs, ar condicionados, ventiladores, livros jurídicos e outras coisas de duvidosa utilidade em prol do meio ambiente (justificativa dos gastos), uma compra me chamou atenção. A procuradora Damaris, em nome do MPF, firmou contrato de compra e venda de uma suposta casa, construída numa área de preservação ambiental de domínio da União. Assim está consignado no relatório do procedimento criminal: “Quanto aos R$ 35 mil, a situação é mais complicada. A comprovação feita pela juntada de uma promessa particular de compra e venda em que a representada assina na qualidade de ‘Representante do Ministério Público Federal no TAC’ e os particulares, titulares de uma posse precária no interior de uma reserva florestal (…). Ora, a representada atua como promitente compradora de uma benfeitoria numa área federal em favor do IBAMA, com recursos da empresa. Nem todos os ‘benefícios à Amazônia’ podem justificar uma atuação assim temerária.”
Mesmo com as mais inusitadas formas de “comprovar” gastos, a conta não fechou. Os R$ 6 milhões foram gastos quase na totalidade, exceto uma ínfima parte que foi devolvida à União, por meio GRU. E mais. No dia 18 de outubro último, foi proferida decisão terminativa no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, processo nº 2008.01.00.009029-3, negando-se seguimento ao agravo, que buscava homologação judicial do TAC. E agora, como é que fica a situação, uma vez que o dinheiro foi gasto e não houve homologação do TAC? Gastos, diga-se de passagem, sem nenhum benefício direto para as populações afetadas pelo empreendimento minerário. Aliás, grandes empresas mineradoras se instalam no Amapá, como foram a Novo Astro na exploração de ouro e a Icomi na exploração de manganês, ganham muito dinheiro, depois vão embora deixando enormes passivos ambientais e sociais. Foi por isso que o juiz Bosco achou pouco os R$ 6 milhões e queria, via audiência, buscar benefícios para as comunidades afetadas.
Apesar de no procedimento criminal ter-se concluído que a procuradora Damaris não observou a lei, nem os termos do TAC, além de ter praticado outras irregularidades, entendeu-se que sua conduta não configurou ilícito penal. Sem entrar nesse mérito nem no do CNMP, que não vislumbrou infração disciplinar, entendo que há farta provas de improbidade administrativa. Assim, tomarei providências para que haja responsabilização na área da improbidade, bem como levarei o caso ao Tribunal de Contas da União (TCU).
O mais cômodo para mim seria o silêncio, mas a minha consciência não me permite tal opção. Quando tomei posse no MPF, como procurador da República, em junho de 1996, jurei cumprir a lei. Essa árdua missão tem me causado muitos problemas, mas se eu não tiver disposição nem coragem para isso, deixo o MPF, pois não fiz tal juramento por mera formalidade de posse no importante cargo. O artigo 236, inciso VII, da LC 75/93, preceitua que o membro do MPF deve adotar providências diante das ilegalidades que tiver conhecimento, seja atuando diretamente, quando tiver atribuição, seja instando quem tem atribuição para a promoção de responsabilidade, que é o que vou fazer; afinal, a lei deve ser cumprida por todos, sem perseguição, sem favorecimento, sem corporativismo.
* Manoel Pastana é procurador Regional da República no Rio Grande do Sul