Pablo Bezerra Luciano*
A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 22 de agosto de 2018, ao julgar os recursos especiais repetitivos nº 1.720.805 e 1.648.305 por maioria de 5 a 4, entendeu que o acréscimo de 25% ao valor da aposentadoria por invalidez ao segurado que necessita da assistência permanente de outra pessoa de que trata o art. 45 da Lei nº 8.123, de 24 de julho de 1991, deveria ser estendido a todas as demais modalidades de aposentadoria. Na ocasião, conforme dá conta notícia veiculada no sítio do STJ¹, prevaleceu o entendimento da Ministra Regina Helena Costa: “Não podemos deixar essas pessoas sem amparo”. Além desse argumento extrajurídico de comiseração, quem presenciou a sessão de julgamento relata que a isonomia foi evocada para a ampliação do rol de beneficiários do acréscimo e, para a maioria prevalecente, tratar-se-ia de prestação de natureza assistencial, o que seria suficiente para afastar a necessidade de indicação e fonte de custeio.
Uma decisão como essa, sobretudo porque dada pelo STJ, o tribunal que teria a função de resguardar o respeito à lei federal, e em sede de recurso especial, deveria ser daquelas a causar intensa sensação de choque e incredulidade na comunidade jurídica brasileira. Deveríamos todos perguntar: “como uma decisão como essa foi possível?”. Mas não será assim. Pelo contrário, não faltarão comentários e artigos louvaminheiros que destacarão o humanismo da decisão, na compreensão de que, em tempos de neoconstitucionalismo, a letra fria da lei seria insuficiente para a moderna compreensão do Direito. Afinal, dirão retoricamente: “o dogma da onipotência do legislador foi superado há muito tempo!”.
Leia também
Não haverá repúdio ao entendimento do STJ porque no Direito Brasileiro, há bastante tempo, tornou-se dogma afirmar que todos os juízos e tribunais podem exercer “controle de constitucionalidade”² pela via incidental ou difusa.
Uma literatura jurídica infindável foi elaborada reproduzindo esse discurso, como se se tratasse de uma evidência palmar. Então, torna-se bastante natural que tribunais como o STJ suspendam todos os dias a eficácia da lei federal, ou que venham a estender benefícios previdenciários a certa classe de pessoas não cobertas pelo texto legal, com base em argumentos de extração constitucional como aqueles relacionados à isonomia ou de simples e pura comiseração.
A facilidade com que leis brasileiras são ignoradas ou desconsideradas judicialmente com argumentos de fundo constitucional talvez não tenha paralelo em nenhum outro lugar do universo — isso para não falar dos argumentos extrajurídicos, como a comiseração. O desvalor da lei é diretamente proporcional ao desvalor do próprio legislativo e, de resto, da cidadania e da democracia. Quanto mais o legislativo cai em descrédito, menos digna de observância se torna a lei pela sociedade e pelos tribunais: um verdadeiro círculo vicioso.
Assim, se determinado benefício previdenciário ou assistencial só é previsto pela legislação para uma certa classe de pessoas, e se o Instituto Nacional do Seguro Social, jungido que está à legalidade, nega o benefício a quem não se enquadra na moldura legal, não ocorre à sociedade mobilizar os meios políticos ortodoxos para promover uma alteração na lei. Justa ou injusta, a ampliação do benefício termina sendo buscada judicialmente, num grande by-pass no Congresso Nacional, com base no argumento isonômico, ainda que não haja planejamento orçamentário capaz de fazer frente à despesa.
Toda essa ciranda viciosa que arrebenta a cidadania e o orçamento público não acontece em decorrência da falta de leitura e de reflexões sobre a Constituição, como à primeira vista possa parecer. Pelo contrário. Milhares e milhares de monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado são produzidas no Brasil sobre controle de constitucionalidade. Nas faculdades, os estudantes têm contato com esse tema não apenas na matéria de Direito Constitucional, uma vez que muito se fala em fenômenos como a constitucionalização do Direito Civil, por exemplo. Além disso, as mais variadas doutrinas brasileiras e estrangeiras sobre controle de constitucionalidade são objeto de cobrança nos concursos públicos, o que estimula a abordagem do tema nos famosos cursinhos preparatórios. Os concursos, então, terminam exigindo de candidatos ao cargo de juiz, por exemplo, conhecimentos que só são demandados diuturnamente aos onze ministros do STF.
O vício decorre em verdade de excesso de estudo e de produção acadêmica sobre controle de constitucionalidade, que acabam banalizando e vulgarizando uma atividade que deveria ser objeto de extrema prudência e parcimônia, pois, mesmo nos processos subjetivos, sempre que se diz que uma lei não pode ser aplicada por ser inconstitucional, também se está negando reverência ao Legislativo, num primeiro lanço, e à cidadania, num segundo lanço. Bem ou mal, estuda-se demais Direito Constitucional, como se fosse uma fixação, e pouco se estudam as fundamentais teorias gerais do Direito e do Processo, por exemplo, para não falar dos demais ramos do direito positivo.
Hoje, no Brasil, todo advogado, todo juiz, todo promotor, todo defensor, de tanto estudar Direito Constitucional e controle de constitucionalidade, tem uma Constituição para chamar de sua. E mais: todo intérprete da ordem jurídica acha-se legitimado a dizer se determinada lei vale ou não vale, cada um por critérios que sejam mais convenientes às suas teses ou visões de mundo. Quem milita na área trabalhista, por exemplo, costuma colocar aprioristicamente acima de todas as regras e princípios constitucionais “os valores sociais do trabalho” do art. 1º, IV.
Já quem atua defendendo os consumidores, tem a tendência de resumir toda a Constituição ao disposto no art. 170, V, que coloca a “defesa do consumidor” como apenas um dos nove princípios explícitos que regem a atividade econômica. Em consequência, não há necessidade de ler, por exemplo, o Código Civil, o Código de Processo Civil ou Código Tributário, pois todas as complexas questões civis, processuais ou tributárias podem ser deduzidas pelo intérprete da ordem jurídica diretamente da Constituição, com uma propriedade muito maior do que o legislador.
Não é possível que prossigamos nessa tragédia jurídica sem nos apercebemos de que é preciso parar, repensar e reconstruir de seus alicerces o nosso sistema de controle de constitucionalidade. Aliás, o que temos no Brasil sequer merece ser chamado de “sistema”. Temos uma mistura amorfa dos sistemas de controle difuso e de controle concentrado, com subjetivação do controle objetivo, e objetivação do controle subjetivo, no qual tudo é permitido, a lei nada vale diante do arbítrio dos julgadores, e o caos é a nossa única certeza.
Essa tragédia só começará a ser debelada quando, muito humildemente, fizermos todos um profundo exame de consciência para reavaliarmos certezas às quais estamos há muitas décadas arraigados, como aquela segundo o qual todo juízo – incluindo o STJ em sede de recurso especial – poderia negar vigência à lei ao argumento de inconstitucionalidade.
Deveríamos começar essa autocrítica perguntando-nos se existe na Constituição algum texto explícito que legitime essa compreensão tão banalizada. Caso tenhamos um mínimo de boa vontade, verificaremos que, em verdade, não existe nenhum texto na Constituição que vá nesse sentido implícita ou explicitamente. Não somente a Constituição não diz que todo juízo pode negar vigência à lei se a entender inconstitucional, como também proíbe expressamente que os Tribunais façam-no sem observar a chamada “cláusula de reserva de Plenário” de que trata o famigerado art. 97. E, se o art. 97 da Constituição diz o que diz, não deve ser todo estranho admitir que os juízos singulares estejam impedidos de negar vigência à lei que reputem inconstitucional.
Caso queiramos radicalizar um pouco mais na crítica, perceberemos que a Constituição não consagrou expressamente o muito comentado “princípio da juridicidade”, mas se referiu diversas vezes textualmente à “legalidade”, o que deveria nos levar à reflexão de que talvez o constituinte estivera mesmo preocupado em superproteger a lei. Ademais, a “guarda da Constituição”, nos termos da Constituição, não foi atribuída explicitamente a todos os juízos, mas, nos termos do caput do art. 102, apenas ao Supremo Tribunal Federal (STF), e isso também poderia nos dizer algo que vá contra a banalização do controle de constitucionalidade das normas.
Ao final dessas reflexões, poderemos chegar à conclusão, por exemplo, de que, em desenvolvimento do comando do art. 97 da Constituição, a lei federal poderia proibir expressamente os juízos singulares de negar vigência da lei com base em argumentos de inconstitucionalidade, estipulando, evidentemente, uma sanção para o caso de descumprimento. Assim, para os processos subjetivos em curso na 1ª instância, poderia ser estatuído por lei um incidente de inconstitucionalidade a ser resolvido pelo Tribunal correspondente, toda vez que o deslinde concreto da causa dependesse da avaliação da compatibilidade da lei com a Constituição, à semelhança do chamado “incidente de resolução de demandas repetitivas”, regulado entre os arts. 976 a 987 do Código de Processo Civil (CPC).
Se quisermos ser menos arrojados, apesar dos termos do art. 97 da Constituição, poderia se pensar, nos processos em trâmite na 1ª instância, na criação de um incidente de inconstitucionalidade instaurável por iniciativa da parte ou do Ministério Público, a ser dirimido pelo próprio juízo processante, seguindo-se a diretriz do “incidente de desconsideração da personalidade jurídica” de que trata os arts. 133 a 137 do CPC. Nesse caso, ainda que longe do ideal, a questão da inconstitucionalidade ganharia ao menos uma seriedade procedimental maior, compatível com a superproteção que a Constituição deu à legalidade. Afinal, se essa seriedade procedimental maior foi pensada no que tange à desconsideração da personalidade jurídica, por que a desconsideração da lei – que é muito mais grave – poderia se dar de qualquer jeito?
Tais inovações, é certo, dependeriam não somente de intermediação legislativa, mas de um amplo trabalho doutrinário prévio de convencimento a ser desenvolvido por décadas contra a atual tendência da comunidade jurídica de enxergar fantasmas nas tentativas de colocar um mínimo de decoro e procedimento no dito “controle de constitucionalidade” difuso. Nesse esforço de convencimento, quem tivesse um mínimo de disposição para rever suas certezas cristalizadas por tanto e tanto tempo, compreenderia que, em teoria, para que um Estado venha a ser reconhecido como submetido a uma Constituição, é necessária a instituição a de alguma forma de controle de constitucionalidade (difuso ou concentrado; judicial ou político), e não a subserviência ao dogma de que todo juiz pode recusar a aplicação da lei que reputar inconstitucional. Sem esse dogma, o caos não seria instaurado, pois caos já temos.
Mas, independentemente de futura intermediação legislativa que venha a colocar nos eixos o chamado “controle de constitucionalidade” difuso no Brasil, desde já não é possível admitir que o STJ dê provimento a recurso especial, ao entendimento de que a decisão recorrida, não obstante de acordo com a lei federal, estaria em confronto com a isonomia, a dignidade humana ou com essa ou aquela norma constitucional, ou com esse ou aquele argumento extrajurídico. O Supremo Tribunal Federal (STF) pode até agir desse modo em sede de recurso extraordinário, mas o STJ, em sede de recurso especial, jamais deveria.
Ora, com relação aos recursos especiais fundados no art. 105, III, “a” da Constituição, o que justifica a competência do STJ é a contrariedade ou a negativa de vigência a tratado ou a lei federal, de modo que dar provimento a recurso especial deve significar necessariamente que o Tribunal Regional Federal ou o Tribunal de Justiça violou ou negou vigência a uma lei ou a um tratado. Sem essa afronta, é dever inarredável do STJ negar provimento ao recurso especial, ainda que a totalidade dos seus membros considere inconstitucional a lei ou o tratado que serviram de base à decisão recorrida. Tal dever proíbe inclusive que o STJ sirva-se, em sede de recurso especial, da norma do art. 97 da Constituição para apreciar a constitucionalidade da lei por seu órgão especial.
Dar provimento a recurso especial com base em argumentos de fundo constitucional, embora pareça a muitos uma forma de ampliar “a força da Constituição”, não passa, em verdade, de um modo muito atécnico de violá-la, com pitadas de usurpação de competência do STF em sede de recurso extraordinário³.
O STJ só fará jus ao apelido de “Tribunal da Cidadania” quando, nos recursos especiais, parar de tentar emular o comportamento do STF em recursos extraordinários ou em ações de controle concentrado de constitucionalidade. Para ser materialmente um “Tribunal da Cidadania”, sobretudo nos recursos especiais, necessariamente o STJ deve guardar estrita deferência à lei, tal qual aprovada pelo Legislativo, rechaçando o arbítrio dos indivíduos, da Administração, e de seus próprios julgadores. Da Constituição quem deve cuidar precipuamente é o STF, e não o STJ. Em outras palavras: há que se compreender que o STF está para os ideais republicanos de estabilidade, assim como o STJ está para os ideais democráticos de dinamicidade.
_______________
1 – Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Adicional-de-25%25-deve-ser-pago-a-todo-aposentado-que-precise-da-ajuda-permanente-de-terceiros;
2 – Em artigo científico, cheguei a sugerir que “o assim chamado ‘controle’ jurisdicional incidental, concreto ou difuso de constitucionalidade, em verdade, sequer merece ser assim chamado, pois o juízo feito sobre a inadequação da lei ante a Constituição nem mesmo vincula as próprias partes em face das quais é dada alguma sentença. Trata-se de um juízo meramente secundário e instrumental ao escopo de pacificar uma dada relação jurídica controvertida. Em outras palavras, o que se ‘controla’ não é a constitucionalidade, mas a própria relação jurídica controvertida no dito ‘controle’ jurisdicional incidental, concreto ou difuso de constitucionalidade. A dicção ‘controle de constitucionalidade’, em tal caso, por encerrar uma clara confusão entre objeto e fundamento (ou entre pedido e causa de pedir), pouco contribui para uma boa compreensão do fenômeno que possibilita a generalidade dos juízes negarem a dar cumprimento a leis que reputem inconstitucionais” (LUCIANO, Pablo Bezerra. A Relevância do Conceito de Relação Jurídica para a Compreensão da Natureza do Controle Concentrado de Constitucionalidade. In Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central. V. 9. N. 2. Brasília: BCB, 2015);
3 – Trata-se de um procedimento comum, pois, por exemplo, o STJ: a) com base na isonomia, decidiu que o prazo da prescrição da pretensão contra a Fazenda Pública, constante do art. 1º do Decreto 20.910, de 6 janeiro de 1932, aplica-se também para as hipóteses de prescrição de pretensão a favor da Fazenda Pública (v. p. ex. AgInt no REsp 1334470/PR, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 07/12/2017, DJe 14/12/2017); b) com base no princípio da “dialeticidade”, decidiu, contra o texto expresso do art. 505 do CPC de 1973 e do art. 1.002 do CPC de 2015, que consagram a recorribilidade parcial, que é ônus da parte impugnar a totalidade da decisão recorrida, sob pena de não conhecimento do recurso[1] (v. NUNES, Jorge Amaury Maia; LUCIANO, Pablo Bezerra. A Inusitada Proibição de Recursos Parciais pelo STJ. Disponível em https://www.migalhas.com.br/ProcessoeProcedimento/106,MI276259,61044-A+inusitada+proibicao+dos+recursos+parciais+pelo+STJ. Acesso em 23 de agosto de 2018); c) com base na “boa-fé”, proibiu a cobrança de valores recebidos por servidores públicos em decorrência de erro da Administração Pública, não obstante os termos do art. 46 da Lei nº 8.112, de 11 de novembro de 1990, e o que consta do art. 876 do CC (v. p. ex. REsp 1244182/PB, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 10/10/2012, DJe 19/10/2012); d) com base na “dignidade da pessoa humana” e no “princípio do convencimento motivado do juiz”, contra o art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, concluiu pela possibilidade de se deferir benefício assistencial quando a renda per capita do núcleo familiar for superior a 1/4 do salário mínimo (v. REsp 1112557/MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 28/10/2009, DJe 20/11/2009); e) com base no “princípio da dignidade da pessoa humana”, concedeu auxílio-invalidez a militar por ser portador da síndrome da imunodeficiência adquirida, em hipótese não prevista na Lei nº 11.421, de 21 de dezembro de 2006 (v. REsp 1426743/RS, Rel. Min. Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 14/08/2018, DJe 22/08/2018); f) com base nos princípios “da proteção integral à criança e ao adolescente” e da “dignidade humana”, concedeu a menor sob guarda direito à pensão por morte de seu mantenedor, apesar da nova redação dada pela Lei nº 9.528, de 10 de dezembro de 1997, aos termos do § 2º do art. 16 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, (EDcl no REsp 1411258/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado em 13/06/2018, DJe 22/06/2018); g) com base na “proteção à boa-fé”, e na forma da Súmula-STJ nº 375, passou a exigir a demonstração da má-fé do adquirente para a ocorrência de fraude à execução sem lei nesse sentido (v. LUCIANO, Pablo Bezerra. A Boa-fé do Adquirente na Fraude à Execução: pelo cancelamento da Súmula nº 375 do Superior Tribunal de Justiça. In Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central. V. 6. N. 2. Brasília: BCB, 2012).
*Pablo Bezerra Luciano é advogado.
Cadê a preventiva, doutor? Direito Penal é erga omnes, não erga “bandidos”