Platão nomeou sua obra mais conhecida como Politeia. Em português, acabou sendo traduzido como A República. Não há que se brigar com fatos consumados, mas de quando em quando esse tipo de confusão terminológica pode fecundar discussões interessantes. Polis, presente no português em termos como ‘metrópoles’, refere-se à cidade-estado grega, a unidade política fundamental na Grécia Antiga. Mais do que uma entidade geográfica, a polis era uma comunidade de cidadãos, que compartilhavam direitos e deveres. Portanto, a noção grega de polis está intrinsecamente relacionada às ideias de cidadania e ao espaço público no qual a vida política, social, econômica e religiosa da comunidade se desenrolava.
Rastreios mais expandidos da origem do termo chegam à noção, em sânscrito, de um lugar onde os leões não entram, um espaço coletivo que as pessoas cercavam e com isso impediam a entrada de feras selvagens. Essa noção continuou presente no grego, com polis representando a cidade murada, e acrópoles, a cidade murada em uma posição elevada.
A politeia platônica é um termo mais abrangente e sua noção é muito similar à de constituição. Ela se referia à organização interna e à forma de governo de uma polis, abrangendo a distribuição de poder, os direitos, os deveres e as formas de participação dos cidadãos. De uma certa forma, a politeia dá forma à vida coletiva dentro da polis.
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A tradução romana, de fato, preservou esse sentido. O termo constitutio significa ‘ato de estabelecer, ordenar, regular’, refletindo o processo de criação e ordenamento de normas e estruturas dentro de uma sociedade. Ao longo dos séculos, o conceito evoluiu, vindo a adquirir, na modernidade, a conotação de um documento ou um conjunto de princípios que define e limita os poderes do governo, estabelece os direitos e deveres dos cidadãos, e organiza as estruturas e funções do Estado.
Recuperando a noção original, a Constituição é um grande tratado moral, entendida a moral como a norma a reger o comportamento entre seres humanos. O ato de cercar um local cria um espaço público, que é de todos e não pertence a ninguém. As formas de ser e estar nesse espaço público são combinadas e definidas em uma Constituição. As escolhas sobre a forma como vivemos em coletividades são escolhas morais. São demonstráveis, em termos lógicos, de forma similar aos teoremas matemáticos. Do fato de serem morais decorre a necessidade de adesão: somos persuadidos, convencidos a adotar a escolha A (digamos, serviço de saúde universal, público e gratuito) ou a escolha B (saúde estritamente privada).
Por mais que o bem comum tenha algo de inefável, as constituições trazem uma versão positivada do que a comunidade imaginou como mínimo denominador comum moral – aquilo que deve ser considerado como um mínimo de bem comum, a ser respeitado por todos.
A Constituição brasileira de 1988 é um tratado dessa natureza. Conforma as instituições políticas e define possibilidades existenciais, dentro dessa coletividade que é o Brasil, para as brasileiras e os brasileiros. Por isso a leitura da Constituição é fundamental, desde o seu preâmbulo, que, aliás, já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como fonte hermenêutica. Nossa coletividade será democrática, vai buscar assegurar os direitos sociais e individuais (a ordem dos fatores aqui importa), além de garantir a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos. Nossa coletividade será fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Entre nossos fundamentos temos a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Nossos objetivos são ousados: – construir uma sociedade livre, justa e solidária; – garantir o desenvolvimento nacional; – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A Constituição é quase quarentona, mas segue ainda como uma filha bastarda para grande parte da sociedade brasileira. Independente de polarizações, vários grupos olham para a coletividade expressa pela Constituição e não se reconhecem nele. Liberdade de crença? Desde que seja a minha; Livre iniciativa? Desde que seja do meu jeito. Ausência de preconceito? Desde que não me obriguem a abolir o elevador de serviço.
Como o marco maior do Direito Positivo de nossa comunidade, a Constituição se sai bem e é celebrada como uma das mais avançadas do mundo. O amplo leque de direitos e garantias individuais, a amplitude e profundidade com que são tratados os direitos sociais, colocam nosso projeto constitucional na vanguarda dos povos, em grande sintonia com o postulado por outra declaração ainda mais abrangente: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Porém, o que se observa em grande parte da sociedade são negações à Constituição de 1988, principalmente no que diz respeito às liberdades individuais, ao estado laico, à proteção do meio ambiente, à relação do Estado com a sociedade e suas formas de solidariedade social (previdência, trabalho, justiça).
Como o grande tratado moral que deveria ser o definidor dos com-portamentos – as múltiplas interações que acontecem nesse espaço político comum a todos – nossa Constituição fracassa. O mesmo Platão que escreveu A República chamava a atenção para o fato de que não era possível dar a um povo a constituição de outro povo. As constituições precisavam respeitar a phoné, a voz de cada comunidade. Essa voz é a síntese primordial daquele coletivo. Infelizmente, o coletivo brasileiro expressa-se cum uma voz preconceituosa, discriminatória, hierárquica e autoritária. A dissonância entre a Constituição positivada e Constituição viva é muito grande.
Não é a toa que a Constituição de 1988 viva sob pesado ataque, com os leões esgueirando-se por entre as brechas para entrar e devorar os cidadãos.
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