O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, contou nesta quarta-feira (11) que propôs ao presidente Jair Bolsonaro em março de 2020, ainda no início da pandemia, que a União assumisse a coordenação da gestão da crise, em uma composição com estados e municípios. Gilmar disse que mostrou a Bolsonaro um decreto assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando o ministro era advogado-geral da União, no enfrentamento do apagão elétrico, em 2001. Na ocasião, destacou, o governo federal assumiu maior protagonismo na crise do setor.
Em seminário promovido pela Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe), Gilmar relatou que foi convidado, no início do ano passado, a encontrar-se com o presidente, em uma reunião da qual também participou o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Sua intenção era sugerir a Bolsonaro que repetisse o modelo adotado pelo governo tucano.
O presidente, no entanto, ignorou a recomendação e acirrou sua posição contra o isolamento social, ressaltou o ministro do Supremo. “O resto é uma crônica de uma morte anunciada, ou de muitas mortes anunciadas”, disse, em alusão aos quase 600 mil brasileiros que perderam a vida para a covid-19.
Gilmar explicou que, com a resistência do governo em adotar medidas de isolamento social, o Supremo agiu para resguardar e deixar clara a competência de estados e municípios na gestão da pandemia.
“Levei o decreto do ex-presidente FHC, como um modelo em que se pudesse fazer algo semelhante, mas o governo tinha muita dificuldade de promover as medidas de isolamento social. Nós então tivemos um papel, no STF, que reputo importante, que nós afirmamos, em muitos casos, que o fato da União ter competência não eximia municípios e estados da sua responsabilidade. É o modelo de competência concorrente”, observou.
De acordo com Gilmar Mendes, as políticas de distanciamento social, preconizadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), poderiam ter tido outro rumo se o governo federal tivesse tomado a frente da gestão.
“Certamente, se a União tivesse participado dessa composição, muitas das sortes e azares com lockdown poderiam ter sido evitados. Mas, diante da ausência da União, não era razoável que a União pudesse dizer e listar quais eram as atividades essenciais, como lotéricas e barbearias”, declarou o ministro, durante sua exposição sobre “Jurisdição constitucional e federalismo em tempo de pandemia”, dirigida a advogados públicos, magistrados e outros profissionais do Direito.
“Ora, cabe ao município estabelecer seus limites, porque é ele que gerencia inclusive a existência de vagas ou não nas UTIs. Como tivemos essa cizânia política, o STF acabou por encaminhar o tema.”
O ministro voltou a rebater a alegação do presidente de que o Supremo tirou a competência da União para gerir a crise. Com esse discurso, Bolsonaro tem se eximido pelo elevado número de mortes por covid-19 e transferido a responsabilidade por elas para o STF, os estados e os municípios.
“O Supremo não excluiu a União desse processo, o que fez foi essa racionalização. Tanto é que, se olharem a própria estrutura do SUS… é talvez a materialização mais explícita que temos de um federalismo cooperativo”, ressaltou Gilmar, citando a participação na gestão do SUS dos secretários estaduais e municipais de Saúde. “Eu diria mesmo, se fôssemos justos com o Supremo, que o Supremo Tribunal Federal ajudou o governo federal e os governos a enfrentarem a pandemia”, acrescentou o ministro.
Defesa da advocacia pública
Em sua exposição, Gilmar também relembrou momentos de sua trajetória profissional, sobretudo sua passagem pela AGU, e defendeu que a categoria e suas associações de classe esclareçam as funções da advocacia pública frente à simplificação que muitas vezes acontece na imprensa. Para o ministro, a defesa da advocacia pública é imprescindível.
“Os atos da AGU dão funcionalidade à democracia funcional brasileira. Quando os governos deixam de ser funcionais isso pode significar a disfuncionalidade da democracia, do sistema”.
Na avaliação de Gilmar, parte da imprensa confunde a atuação da advocacia pública com a de determinados agentes políticos. “Ser membro da AGU neste momento coloca a advocacia pública como defensora do governo, enquanto somos defensores de políticas públicas de um governo legitimamente eleito”, afirmou.
Gilmar reafirmou a importância do jornalismo enquanto papel mediador entre o direito e o cidadão comum. O ministro disse que, embora tenha feito muitas críticas à imprensa, compreende o seu papel. “Se eu tivesse que ministrar um curso a novos servidores da AGU, eu diria ‘valorize a imprensa, valorize o homem da imprensa porque ele é fundamental'”, afirmou.
Seminário
O seminário “As instituições jurídicas e a defesa da democracia” prossegue até a próxima sexta-feira (13).
O evento é organizado pela Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe), que representa as quatro carreiras que compõem a AGU: procuradores da Fazenda Nacional, advogados da União, Procuradoria-Geral Federal e procuradores do Banco Central. O seminário é promovido em parceria com a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe); a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR); a Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape); a Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM); a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) e a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef), além da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
As discussões são acompanhadas pelo Congresso em Foco e transmitidas também pelo canal da Anafe no Youtube. A participação no evento é gratuita e dá direito a certificado.
Veja o que mais foi discutido no seminário nessa quarta-feira:
O Estado Regulador Policêntrico no Contexto da Pandemia – Cleso da Fonseca
Na mesa das 10h da manhã o procurador federal Cleso da Fonseca afirmou que nesse momento pandêmico é necessário buscar dentro do nosso universo de atuação aquela contribuição que é possível dar, já que essa é uma crise multidimensional. Para isso, ele deu exemplo do seu setor de atuação, o de aviação. Cleso é procurador-geral da Agência de Aviação Civil (Anac). ” O sistema de prevenção de acidentes brasileiro funciona. Há o que chamamos de princípio da caixa-preta, no qual se aprende com os erros. Temos que ter um princípio da caixa-preta nas instâncias regulatórias, institucionais e jurídicas, visando sempre a melhora”
Para Cleso, o envolvimento dos Estados tem que ser integral, já que estes têm dificuldades de resolver problemas transfronteiriços. Na avaliação do procurador, é necessário entender possíveis ferramentas teóricas para solucionar essas questões. “No âmbito das outras frentes teóricas mas eu puxo pra minha, que é a Teoria regulatória, onde temos discussões tanto no campo prático quanto teórico que podem contribuir para o debate”. Essa abordagem se volta, segundo Cleso, à busca de correções de falhas de mercado, mas que há perspectivas que se voltam para o próprio Estado, principalmente um Estado que ele chamou de regulador e policêntrico. ” Quando eu falo isso eu quero dizer que esse Estado tem vários centros com poderes regulatórios e com distribuição desses poderes de regulação”.
Advocacia Pública no Combate à Corrupção – Marcello Terto e Silva
Na mesa das 14h, o representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Marcello Terto e Silva avaliou que a democracia vem sendo permanentemente testada. Não apenas por conta do contexto atual segundo ele, mas porque isso está na essência do sistema. “Hoje inclusive há pessoas que defendem a implosão das instituições, o que põe em xeque a segurança jurídica e autoridade dos poderes constituídos.”
Marcello desenvolveu a percepção de que a corrupção não é o problema em si, mas sim o que causa esta, que essencialmente é uma péssima gestão. “O Brasil gerencia muito mal a coisa pública, e quer resolver com criando discurso narrativo pra acobertar incompetência”, provocou o advogado. Para ele, a Advocacia Pública seria importante por ser um órgão de conexão, de acoplamento entre esferas políticas, econômicas, sociais e jurídicas. “Temos uma função de conversão de linguagem”.
Equilíbrio Fiscal e Exigência de Créditos Tributários em meio à Pandemia
Na temática tributária o procurador da Fazenda Daniel Menezes comentou que a atual pandemia pode pedir soluções por vezes conflitantes. “ A resposta natural seria gastar mais no combate a pandemia e aliviar o gasto tributário das empresas em dificuldade”. Todavia, aponta Daniel, já há uma crise financeira desde 2008 que desafia justamente o gasto público somado à já conhecida questão fiscal. “Essa conjunção cria uma crise política que foi se radicalizando a partir de 2013”.
Daniel propôs entender que política tributária seja vista não como apenas política arrecadatória, mas sim política pública. “Por ter fins próprios, como redução de desigualdade, distribuição de riqueza. Tudo isso são fins próprios. Por ter essa autonomia ela é verdadeiramente uma política, então ela deve ser uma discussão não apenas econômica, mas também democrática e jurídica”.
A também procuradora Anelize Lenzi seguiu o colega pontuando que uma conjunção de crises, incluindo a pandemia, faz com que 24 de 27 estados brasileiros se encontrem em desequilíbrio fiscal. Dentre as possibilidade de atuação holística possíveis entre Fazenda Nacional, Estados e contribuintes para solucionar essas questões está o programa de retomada fiscal, da Procuradoria da Fazenda. “Ele traz diferentes modalidades de negociação a partir de algo essencial, que é a analise concreta do débito e do devedor”.
Anelize, porém, avalia, que, sem estrutura normativa forte não vamos sair disso, mas aponta que soluções mirabolantes também não funcionariam. “Mudanças grandiosas na Constituição sem redesenho da estrutura financeira do estado e do sistema tributário faria com que ocorressem crises cíclicas”.
Advocacia Pública no Estado Ditatorial/Atividade Correicional sobre Manifestações Políticas
Na última mesa do dia o procurador federal Galdino José Dias Filho alinhavou o que seria a advocacia pública no Estado Ditatorial, em contraste com aquela do Estado democrático de direito.
“O estado ditatorial impõe suas vontades à força e não tem preocupação com respeito a lei, já que ela não necessariamente vem do legislativo”, apontou Galdino, afirmando que, em oposição, a advocacia pública na democracia atua de forma estratégica na confluência entre esta, a justiça e a legalidade.
Logo depois, Aldemário Araújo Castro, Procurador da Fazenda Nacional trouxe à discussão os limites da manifestação política no seio da advocacia pública. Apontando a Lei 8112/1990, especialmente ao artigo 117,inciso 5, ele apresentou que ao servidor público é proibido promover manifestação de apreço ou desapreço na repartição.
O procurador delineia, porém, que isso incorre apenas se o alvo da manifestação é alguém, e não quando se manifesta sobre políticas públicas, atos administrativos etc.
“O que parece interditado é quando a manifestação é dirigida a pessoa e ela é alvo da manifestação, particularmente quando se denigre essa imagem”, disse Aldemário, citando de forma crítica inclusive manifestações dessa natureza vindas do presidente da república, Jair Bolsonaro (sem partido).
“Eu tenho visto também algumas tentativas de interpretação isolada desse dispositivo. Ele jamais poderia ser interpretado isoladamente porque ele tem relação estreita com texto constitucional”.
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