Um colega procurador da Fazenda Nacional, que tomou posse no cargo no dia 7 de junho próximo passado, me indagou, por intermédio de uma mensagem de correio eletrônico, sobre a distinção entre Advocacia de Estado e advocacia de governo.
Ele afirmou que, nos estudos para o concorrido concurso público, não identificou materiais tratando dos temas. Entretanto, ao ingressar na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), órgão de direção superior da Advocacia Geral da União (AGU), ouviu várias referências sobre a Advocacia de Estado como contraponto à advocacia de Governo.
O pano de fundo do referido questionamento envolve um momento de forte ebulição na Advocacia Geral da União. A maioria dos integrantes das carreiras jurídicas da AGU estão envolvidos em uma mobilização para garantir dignidade e segurança remuneratória por meio da recomposição dos valores dos subsídios pagos pelo Poder Público. Persegue-se a simetria com as demais funções essenciais à Justiça como uma medida necessária em sintonia com o texto constitucional.
Lembrei que escrevi, anos atrás, um texto sobre a distinção destacada pelo novo colega de AGU. Precisamente em abril de 2010 fiz algumas reflexões sobre a diferenciação. Cheguei a duas relevantes conclusões, depois de reler o escrito: a) a diferença é fundamental para a compreensão acerca do funcionamento da advocacia pública e b) a distinção permanece atual. Assim, reproduzo na sequência, com ajustes e acréscimos, o conteúdo do texto referido.
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O longo e penoso processo de construção de uma advocacia pública federal em novas bases, com valores e paradigmas alinhados à modernidade e procedimentos adequados aos novos tempos, experimenta momentos de avanços e de recuos. A exata e mais radical (no sentido de profunda) compreensão e efetivação da condição de instituição de Estado da Advocacia Geral da União não é um movimento dos mais fáceis.
Nessa dura caminhada, um dos aspectos de maior relevo envolve a identidade do advogado público federal. Aqui, o termo “identidade” aparece como delimitação e consciência do papel desempenhado, notadamente nas relações com os gestores ou governantes (a face visível do “cliente”). Identificar, com precisão, o “cliente” é o primeiro passo na construção da identidade do advogado público e, de certo modo, condiciona as definições seguintes mais importantes. São duas as possibilidades básicas: a) o “cliente” é o Governo ou b) o “cliente” é o Estado.
PublicidadeO festejado jurista Diogo de Figueiredo Moreira Neto formulou com precisão e maestria, em estrita consonância com o Texto Maior, a concepção das Procuraturas Constitucionais (Advocacia Pública em sentido amplo). Identificou:
- a advocacia da sociedade, viabilizada pelo Ministério Público, relacionada com a defesa de interesses sociais com várias dimensões subjetivas, da ordem jurídica e do regime democrático;
- a advocacia dos necessitados, operacionalizada pela Defensoria Pública, voltada para a defesa dos interesses daqueles caracterizados pela insuficiência de recursos;
- a advocacia do Estado (ou Advocacia Pública em sentido estrito), instrumentalizada pela Advocacia Geral da União e pelas procuradorias dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, vocacionada para a defesa dos interesses públicos primários e secundários (com a clara prevalência dos primeiros em relação aos últimos, em caso de conflito, em homenagem à construção responsável do Estado Democrático de Direito).
Importa, pois, delinear a essência da Advocacia de Estado e apartá-la, se for possível, e é possível, da advocacia de governo (ou dos governantes).
Perceba-se que o advogado público pauta sua atividade, quer contenciosa, quer consultiva, na legalidade em sentido amplo (ou juridicidade). Os vetores mais importantes da atuação dos advogados públicos residem na constitucionalidade e na legalidade. A vontade do gestor só é relevante se estiver em consonância com a juridicidade.
Na atuação contenciosa são defendidas políticas públicas e atos administrativos sob os argumentos de serem fundados em leis e estarem em consonância com a Constituição. É certo, registre-se, a persistência de uma séria dificuldade, a ser operacionalmente superada, quanto à defesa, ou não, dos atos administrativos reputados ilegais ou inconstitucionais, considerados e devidamente tratados os espaços de razoabilidade e as convicções pessoais acerca das matérias jurídicas envolvidas.
Na atuação consultiva são reconhecidas, ou não, a constitucionalidade e a legalidade de políticas públicas e atos administrativos. Ainda nessa seara podem e devem ser apontados os caminhos ou soluções que afastem os ilícitos de todas as ordens para a consecução da decisão política legitimamente adotada.
Esses são os traços mais salientes de uma Advocacia de Estado. Alguns aspectos da atuação dos advogados públicos somente alcançarão um patamar qualitativamente adequado e um padrão de harmonia com a construção de um Estado Democrático de Direito em um ambiente de exercício, de prática efetiva, de uma Advocacia de Estado.
O exercício da independência técnica (relativa) dos advogados públicos e o viés construtivo das manifestações consultivas e contenciosas exigem um certo distanciamento dos “interesses imediatos” (e dos “humores imediatos”) dos gestores e administradores. Não é concebível, salvo dentro da triste lógica da advocacia de governo, uma relação hierárquica, de subordinação, do advogado público em relação à “cadeia de comando” funcional de determinado órgão, ministério ou entidade.
A não-obrigatoriedade de recorrer de todas as decisões judiciais contrárias ao Poder Público também reclama um “olhar” distanciado dos “humores imediatistas” dos gestores. O cálculo de viabilidade de reversão de tendências jurisprudenciais ou de esgotamento da argumentação razoável em torno de determinadas matérias deve ser efetivado substancialmente pelos advogados públicos com estreita convivência com a problemática. Não deixa de ser salutar a criação de um espaço institucional para desenvolver o “diálogo final” entre gestores e advogados públicos em torno do racional encerramento da litigiosidade em relação a certos temas recorrentes.
A defesa de atos de autoridades públicas não pode ser efetivada de forma acrítica, em todos os casos e em quaisquer circunstâncias. Afinal, existem inúmeras situações onde impera a ilegalidade, a imoralidade, a improbidade, a má-fé e o dolo. Esse olhar criterioso está em harmonia com a advocacia de Estado. A tal advocacia de governo não consegue trabalhar bem a transgressão jurídica (pontual ou “patológica”) do gestor.
Nesse sentido, a Portaria AGU n. 408, de 2009, editada pelo então advogado-geral da União José Antônio Dias Toffoli, inaugurou, nesse campo, o processo de construção de uma Advocacia de Estado. O aludido ato, entre outras hipóteses, não viabiliza a defesa judicial de autoridades quando: a) não tenham sido os atos praticados no estrito exercício das atribuições constitucionais, legais ou regulamentares; b) não tenha havido a prévia análise do órgão de consultoria e assessoramento jurídico competente, nas situações em que a legislação assim o exige; c) tenha sido o ato impugnado praticado em dissonância com a orientação, se existente, do órgão de consultoria e assessoramento jurídico competente, que tenha apontado expressamente a inconstitucionalidade ou ilegalidade do ato, salvo se possuir outro fundamento jurídico razoável e legítimo; d) ocorra incompatibilidade com o interesse público no caso concreto e e) identificada conduta com abuso ou desvio de poder, ilegalidade, improbidade ou imoralidade administrativa, especialmente se comprovados e reconhecidos administrativamente por órgão de auditoria ou correição.
Na advocacia de governo (ou dos governantes), o advogado público federal é chamado para, diante de uma decisão pronta e acabada (não há participação na “construção” da solução, frise-se), necessariamente atestar a constitucionalidade e a legalidade da pretensão. Em regra, não existe um chamamento direto nesse sentido. Não é dada, salvo exceções, uma “ordem” para a elaboração de uma manifestação “interessada”. Os “caminhos” são mais sutis, incluindo uma “cuidadosa” seleção de advogados “sensíveis” aos reclamos mais “mesquinhos” do poder.
A complexidade e riqueza da vida aponta para variações inusitadas da repulsiva advocacia de governo. Uma das páginas mais tristes da advocacia pública ocorre quando os órgãos que a compõem são capturados por projetos políticos pessoais de seus dirigentes máximos, com lamentável desprezo pelos anseios dos integrantes de suas carreiras jurídicas e do papel constitucional reservado para a instituição. Nesse contexto degradado, costuma-se assistir a um deplorável baile de máscaras que mudam com a mesma velocidade que se alteram as circunstâncias.
Observe-se que a advocacia de governo é tão indesejável e repulsiva que chega a se caracterizar como ilícita, justamente por afrontar a independência técnica (relativa) do advogado público, consagrada, pelo menos, na Constituição, no Estatuto da OAB e em pareceres vinculantes da AGU. Ademais, o padrão de comportamento ínsito à advocacia de Governo não se coaduna com o Estado Democrático de Direito informado pelo princípio da supremacia do interesse público (primário).
A necessária construção da Advocacia de Estado no âmbito da Advocacia Geral da União, com o consequente afastamento da advocacia de governo, exige um arranjo decorrente da combinação da autonomia institucional da AGU no plano constitucional (nas vertentes administrativa, financeira e técnica) e de uma nova e moderna lei orgânica que afaste vários entraves (como a hipertrofia das funções do advogado-geral) e defina uma série de avanços (como um colegiado de efetiva direção superior e um conjunto adequado de garantias e prerrogativas para os integrantes de suas carreiras jurídicas).
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