Ana Trigo *
Está em curso no Congresso Nacional um movimento para diminuir o acesso a direitos humanos básicos de setores da nossa sociedade. Bancadas conservadoras, como a ruralista e a das armas, se unem à Frente Parlamentar Evangélica (que congrega parlamentares de outras religiões cristãs) para confrontar as decisões que estão na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). A justificativa é que o Congresso seria o espaço adequado para legislar sobre temas que afetam a sociedade. Mas, ao criticar o que chamam de ativismo político do Supremo, deixam claro que o alvo está direcionado a temas bastante específicos como o marco temporal, aborto legal e casamento homoafetivo, por exemplo.
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No dia 28 de setembro, o deputado federal Domingos Sávio (PL-MG) conseguiu a assinatura de 175 colegas, quatro a mais do que o necessário, e protocolou na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 50/2023, apelidada de “PEC do equilíbrio entre os poderes”. A proposta altera o artigo 49 da Constituição permitindo que o Congresso derrube, por maioria qualificada, decisões tomadas no Supremo que “extrapolem os limites constitucionais”.
Mas, dias antes, a movimentação parlamentar contra o STF já estava em plena atividade. No dia 21 de setembro, o Supremo derrubou a tese do marco temporal, que reconhece apenas como territórios indígenas aqueles que foram demarcados ou ocupados até a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Para os ministros do STF, a Constituição garante o direito dos povos originários independente da data. Poucos dias depois, o Senado aprovou o marco temporal a toque de caixa, criando um imbróglio para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) resolver com veto ou sanção.
A discussão sobre a descriminalização do aborto, que entrou na pauta do Supremo e recebeu voto favorável da agora aposentada ministra Rosa Weber, é outro tema caro aos conservadores. Vejam a estratégia usada pelo senador Rogério Marinho (PL-RN). No dia 26 de setembro, ele apresentou um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para realização de uma consulta popular, ainda sem data definida. “O eleitorado será consultado a responder ‘sim’ ou ‘não’ à seguinte questão: você é a favor da legalização do crime de aborto?”, diz o texto do projeto.
Ao tratar diretamente o aborto como crime, sem deixar claro que há casos em que o aborto é legal (gravidez resultante de estupro, risco de vida à gestante e fetos anencéfalos), o senador marca território contra as pautas que estão sendo julgadas pelo STF e ainda pune previamente qualquer mulher que busque o procedimento. Não por acaso, Marinho, que foi ministro do Desenvolvimento Regional do governo de Jair Messias Bolsonaro (PL), é muito próximo de parlamentares evangélicos, como os colegas senadores Magno Malta (PL-ES) e Damares Alves (Republicanos-DF).
PublicidadeMas talvez o movimento mais estridente seja o que colocou na pauta da Câmara a discussão sobre as uniões homoafetivas. O deputado federal Pastor Eurico (PL-PE) defende a aprovação do Projeto de Lei 5167/09 que diz que a relação entre pessoas do mesmo sexo não pode ser considerada casamento ou família. No entanto, desde 2011, o Supremo reconhece que os casamentos homoafetivos são equiparados às uniões estáveis entre homens e mulheres, além de entender que não há na Constituição Federal um conceito “fechado” de família. E em 2013, o Conselho Nacional de Justiça proibiu os cartórios de todo o país de rejeitarem as uniões, beneficiando milhares de casais homoafetivos.
A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados adiou a votação e o tema deve voltar à discussão no dia 10 de outubro. A deputada Duda Salabert (PDT-MG), mulher trans, fez uma crítica contundente à discussão do projeto na comissão. A deputada questiona como a proibição do casamento homoafetivo irá combater as desigualdades socioeconômicas ou melhorar a vida das famílias brasileiras. “Vamos ficar aqui um mês debatendo um projeto inconstitucional para agradar setores ultrarreacionários da sociedade que usam as dores da comunidade LGBT como trampolim político”, disse.
Salabert argumentou ainda que os que se dizem favoráveis ao projeto querem, na verdade, usar o tema como cortina de fumaça para desviar a opinião pública de outros problemas nacionais. Mas querem, principalmente, segundo a deputada, definir quem o Estado Brasileiro deve reconhecer como ser humano. “Hoje, nós pessoas LGBT, sobretudo travestis e transexuais, ainda lutamos para conquistar essa categoria de humanidade. Só é humano aquele que tem direito. E quando querem tirar nossos direitos, querem justamente retirar a pouca porção de humanidade que nós conquistamos a muitas penas nos últimos anos”.
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* Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa GREPO (Gênero, Religião e Política – LAR/Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.
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