No início da década de 1980, começamos a organizar a Associação dos Servidores Municipais de Curitiba, e já ao final daquela década, com a aprovação da Constituição, iniciamos a organização do sindicato. Era um período difícil da história: final da ditadura e início da democracia e do processo de organização social e sindical.
Naquele período, era raro encontrar uma categoria que fazia a luta só para a sua corporação. A maioria lutava pelos direitos específicos de sua área e também fazia a luta para a conquista da democracia. Democracia agora tão vilipendiada pela sociedade e por muitos servidores públicos. Tão vilipendiada por muitas instituições públicas e privadas.
Lembro-me dos nossos primeiros embates com os prefeitos da época. O velho e surrado discurso era mais ou menos o seguinte: “Servidor ganha bem e só quer privilégios”. Este velho e surrado discurso continua até hoje em muitas áreas governamentais, e o melhor remédio é fazer o que muitos de nós fizemos no passado: expor o salário que recebe.
Na época, final dos anos 80, para organizar a nossa luta por melhores condições de trabalho e salário – inclusive alguns médicos participaram –, tomamos a iniciativa de pendurar nas portas dos centros de saúde os nossos contracheques para mostrar o quanto recebíamos. Essa exposição tinha dois objetivos: se contrapor ao discurso do governante de que o salário era alto e conquistar o apoio da população para as nossas reivindicações.
Leia também
Aquilo que para nós na década de 1980 (expor o salário) era instrumento de luta para a conquista de melhor salário, transparência e pela moralização do serviço público, em alguns setores e categorias, foi subvertido. Hoje, alguns juízes consideram crime o ato de expor o salário. O que está ocorrendo no país? Por que a ordem moral está se subvertendo?
Como servidor público, no exercício de mandato ou não, sempre lutei por justiça social, pela transparência dos atos e das decisões dos governantes e pela moralidade do serviço público. Expor o salário é uma maneira de informar sobre a legalidade do que recebe, dar transparência e moralidade.
Expor o quanto ganha é demérito ou criminoso caso se esteja ganhando acima do que é considerado constitucional e legal. Alguns também fazem julgamento moral. Certo que fazer julgamento moral sobre a renda de uma pessoa pode ser algo perigoso.
Segundo Houaiss, moral “pertence ao domínio do espírito do homem”. E, no momento, parece que o espírito do homem brasileiro – e também de algumas brasileiras – é o de condenar tudo o que não é verde e amarelo. E esse espírito quem ajudou a construir foi o próprio Judiciário, com o discurso moralista para combater a corrupção. Avançaram tanto no discurso que alguns atos, mesmo que legais, dão a interpretação moral de que são crimes. Agora se debatem entre legalidade e moralidade.
No Brasil vigora, felizmente, uma lei que estabelece a obrigação dos órgãos e instituições públicas de expor os salários de seus servidores. Está na internet para quem quiser acessar, e alguns jornalistas o acessaram e divulgaram. Agora, estão sendo acusados de terem cometido um crime. Ora, se está, por obrigação legal, na internet para qualquer pessoa consultar, por que é crime transcrever a lista num jornal?
Jornalistas que trabalham na Gazeta do Povo, de Curitiba, estão sendo processados por alguns juízes porque divulgaram o salário dos juízes. Três repórteres, uma analista de sistemas e o responsável pelo material gráfico publicado viraram réus em 36 ações em juizados especiais. E o que chama a atenção é que estão espalhadas por várias regiões do Estado do Paraná e são semelhantes, uma vez que o modelo foi enviado pela entidade de classe da categoria.
Interessante: a entidade teve que mandar um modelo de ação. Não são formados em Direito, e atualmente juízes, para precisar de modelo?
Também chama a atenção que juízes condenam moralmente quando alguma entidade ajuíza ações de idêntico ou assemelhado mérito em distintas regiões. Geralmente condenam como ato de má-fé. E, nesse caso, o que podemos dizer?
Se, no passado, fazíamos a luta expondo os nossos salários, há aqueles, hoje, que querem esconder o salário. Há algo de errado nisso. E tem mais: é certo que um membro de uma corporação entre com uma demanda contra um cidadão, sendo membro da mesma corporação que a julgará?
Ah! Sei, assim é a lei. Mas está certo?
Deixe um comentário