por Edilene Lôbo* e Bianca Stella Azevedo Barroso**
Tratar desse assunto implica assentar premissas.
A primeira é considerar a dimensão ético-jurídico-política no sentido de que a presença de mulheres nos espaços de decisão significa uma exigência básica de justiça e de democracia.
A Constituição brasileira estabelece para a nossa República o dever de promover o bem de todos e todas, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idades, orientação sexual e quaisquer outras formas de discriminação, se comprometendo com o combate à exclusão (art. 3º, IV). Em seguida, há o compromisso com a defesa da paz e a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II e VI), que se ancoram no princípio da igualdade como possibilidade de emancipação definitiva e eixo de orientação das políticas públicas e, por que não dizer, também das atividades privadas (art. 5º, I).
Sob o ângulo da democracia representativa, a premissa primordial é que se trata de condição necessária para que mais da metade da população seja levada em conta e possa atuar e se fazer presente nos espaços que desejar.
Tratando da eficiência, como princípio gestor da ação estatal (art. 37), se os espaços de decisão se fizerem plurais, à igualdade e semelhança da sociedade, a chance de acertos na implementação dos direitos fundamentais, particularmente das maiorias vulnerabilizadas de toda a sociedade, para quem as políticas públicas devem se dirigir, é bem maior.
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No campo estético, não é justo que a diversidade brasileira não esteja na foto dos ambientes de tomada de decisões, pois, nossa sociedade não somente é formada majoritariamente por mulheres (51,1%) mas, destas, 54,5% integram a estrutura econômica, participam de atividades produtivas com força direta de trabalho e com reflexo na manutenção das famílias.
Neste ponto, vale trazer à reflexão que a ausência das mulheres na fotografia, ou a imagem com exposições femininas distorcidas e estereotipadas, apenas faz reforçar a visão do poder simbólico masculino, como aquele ser superior e erudito, construído pela sociedade machista que introjeta na mente das pessoas a super valorização dos homens, em contraponto à figura da mulher, vista como inferior, débil e de menor importância, a fim de manter a naturalização de sua exclusão da vida social e pública.
Na prática, essa ausência de imagens das mulheres nos documentos e registros históricos configura a violência simbólica, tão bem elaborada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, que, apesar da terminologia utilizada, está longe de representar apenas um símbolo imaterial, porque produz efeitos concretos e deletérios na vida e na formação delas como protagonistas sociais de atuações bem sucedidas, pois reforçam, subliminarmente, a ideia de que elas não estão lá porque não trabalham e não contribuem nestes espaços de decisões comunitárias relevantes.
Este tipo de violência traz em si o perigo da tendência à perpetuação da discriminação e da desigualdade entre gêneros e raça, pelo que precisa ser conhecida, rompida e combatida.
Importa, ainda, reconhecer que essa baixa participação das mulheres nos espaços de decisão não se deve a escolhas individuais, mas aos edifícios da estrutura social que não só reforçam, como fomentam a desigualdade entre homens e mulheres.
E também não é justo falar desta desigualdade com desprezo a interseccionalidades, ou seja, deixando de se estabelecer as “diferenças dentro das diferenças”, no dizer de Kimberle Crenshaw, porque os marcadores sociais de raça e classe são imprescindíveis para se compreender como essas discriminações atuam em conjunto e formam pontos de interseções que servem para nos orientar sobre o grau de desigualdade de determinados grupos, atingindo ainda mais violentamente as mulheres negras. São verdadeiros alertas sobre necessidades de ações prioritárias e de proteção estatal.
Outro aspecto crucial, dessa chaga da desigualdade, consiste na constatação de que, mesmo às mulheres empoderadas, são reservados “nichos” de atuação, ou seja, as mulheres são sempre direcionadas a exercer funções em “questões femininas” como aquelas relacionadas a atividades de cuidado, saúde e bem-estar social que remontam à vetusta e conhecida divisão sexual de trabalho adotada socialmente de forma arbitrária e discriminatória ao longo de gerações, ainda sendo apontada como uma das causas da exclusão de mulheres de temas, serviços e ações com espectros mais amplos.
Na esteira dos efeitos de tais desigualdades, urge destacar, para além da violência doméstica e familiar, dois tipos de violência que atingem em cheio as possibilidades de as mulheres ocuparem espaços de decisão: 1º) a desinformação e o discurso de ódio contra as mulheres (porque atenta contra todas, em todos os quadrantes da sociedade); e 2º) a violência política de gênero, que coage, constrange, censura e captura as protagonistas do debate na arena política.
Mirando as eleições que se avizinham, é recomendável falarmos da violência política de gênero, que se pratica também por meio da desinformação e dos discursos de ódio dirigidos contra as mulheres, sendo considerada uma das grandes causas de afastamento delas das eleições e dos centros de poder político.
Em que pese a violência política tratar de condutas antigas, tristemente naturalizadas, é fato que contamos com duas novas leis que se destacam por estabelecer regras protetivas em ambiente político, sendo estas a de nº 14.192/21, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher; e a de n° 14.197/21, que altera o Código Penal para introduzir os crimes contra o Estado Democrático de Direito, adotando a perspectiva de gênero ao tipificar ações violentas que restrinjam, impeçam ou dificultem o exercício de direitos políticos em razão do sexo e acrescenta a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Neste contexto de normas e interseccionalidades, impõe-se destacar que as mulheres pobres e negras estão no ponto nevrálgico de interseção dos fatores sociais desfavoráveis, combinando discriminações e violências, pelo que sequer são cogitadas nos espaços de decisão e poder, o que nos leva a atentar para necessidade de uma política urgente e prioritária de ações institucionais de base e qualificação para criar condições de mudança estrutural a curto e médio prazo, a fim de se falar em verdadeira política de equidade étnico-racial.
A par dessas premissas e contextualizações normativas e sociais, urge a construção de uma justiça de gênero e de raça, considerando, de verdade, a adoção de políticas estatais eficazes para garantir o amplo acesso das mulheres negras, não negras, incluindo as advindas dos povos originários, às estruturas de poder e aos processos decisórios.
* Edilene Lôbo é ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral, professora e advogada.
** Bianca Stella Azevedo Barroso é membra Auxiliar do CNMP, ouvidora das Mulheres, promotora de Justiça do MPPE e presidente do Ministério Público Democrático.
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