O Brasil voltou ao mapa da fome. Na avaliação da equipe de transição para o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, esse fato é o principal indicador do “desmonte das políticas de desenvolvimento social ocorrido nos últimos quatro anos”. Flagelo histórico de um país que sempre teve grandes desigualdades sociais, a fome tinha deixado de ser um drama brasileiro em 2014, quando a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) retirou, no primeiro governo de Dilma Rousseff o Brasil do mapa da fome.
“Um futuro com comida na mesa e mais dignidade para as 33 milhões de pessoas em situação de grave insegurança alimentar demandam a imediata retomada do conjunto de políticas públicas que o Brasil implementou com sucesso nos governos do PT”, considera o texto do relatório da transição apresentado na manhã desta quinta-feira (22) por Lula e sua equipe.
Retrato do desmonte: veja a íntegra do relatório da transição
Na avaliação do relatório, “as políticas de transferência de renda, os programas de segurança alimentar e nutricional, e a oferta de serviços sociais estão completamente desorganizadas e contam com previsão orçamentária reduzida ou, por vezes, quase inexistentes”. A primeira tarefa prometida então pelo novo governo é fazer essa reorganização.
Sistema desarranjado
Na avaliação do grupo setorial que tratou do tema, o governo Bolsonaro implementou de forma improvisada o Auxílio Brasil, e isso “desarranjou” todo o sistema de transferência de renda que estava em funcionamento há quase vinte anos. O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) “perdeu o foco, tratou de maneira igual os desiguais e levou milhões de pessoas para filas nas portas dos serviços socioassistenciais”.
O caráter eleitoreiro e assistencial implementado por Bolsonaro alterou as condicionalidades em saúde e educação e fragilizou o programa. Por exemplo, o total de crianças menores de sete anos com acompanhamento vacinal passou de 68% em 2019 para 45% em 2022.
“Apenas 60% dos dados do Cadastro Único para Programas Sociais estão atualizados”, diz o relatório. O cadastro também está desfigurado. “Das cerca de 40 milhões de famílias inscritas, 13,9 milhões compõem arranjos unipessoais”, ou seja, o beneficiário não compõe um núcleo familiar, é apenas ele. Há desconfiança de que pode ter havido fraude nesses casos, com mais de um beneficiário cadastrado numa mesma família. “Isso tem impacto não apenas na concessão do Auxílio Brasil, mas também em outros 30 programas que utilizam o Cadastro, inclusive os programas de transferência de renda de estados e municípios”, explica o relatório. “O governo Bolsonaro incluiu milhares de pessoas do CadUnico e ameaçou retirar em função da má gestão e da falta de recursos”.
Empréstimos às vésperas das eleições
Além dos benefícios, às vésperas das eleições Bolsonaro procurou turbinar as contas bancárias de eleitores de baixa renda com empréstimos consignados vinculados ao Auxílio Brasil e ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os empréstimos foram concedidos pela Caixa Econômica Federal.
“A Caixa o fez sem respeitar a lei das estatais, com taxas de juros exorbitantes, nenhum dos grandes bancos do país aderiram ao programa dado seu risco, o que foi viabilizado por medida provisória, convertida na Lei 14.431/2022”, explica o texto. “Assim, um a cada seis beneficiários do Auxílio Brasil contraiu o empréstimo consignado. Essas pessoas terão até 40% do valor de seu benefício comprometido, mesmo que não permaneçam no programa. A medida, claramente eleitoreira, vai na contramão das políticas de proteção social, colocando em risco benefícios futuros”, conclui o texto.
Orçamento do SUAS
Outro ponto destacado no relatório é a falta de recursos para o funcionamento do SUAS, o sistema que regula os benefícios. O orçamento previsto para 2023 é de R$ 50 milhões. “Este valor não é suficiente sequer para um mês de funcionamento dos equipamentos de proteção básica e especial e das unidades de acolhimento. Há risco real de paralisação do SUAS”, alerta o relatório.
“A fila de espera para o BPC conta hoje com mais de 580 mil pessoas e o tempo médio para a concessão do benefício passou de 78 para 311 dias, segundo levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU)”, observa o relatório.
Fome
O retorno do Brasil ao mapa da fome não surpreende, segundo o relatório, quando se observa o desmonte das estruturas diretamente relacionadas à segurança alimentar. “Em relação à política de segurança alimentar e nutricional, houve um completo desmantelamento”, diz o texto.
“O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi desativado e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) não teve nenhum papel relevante durante todo esse período. Quase todos os programas tiveram orçamento reduzido, dependentes cada vez mais de emendas parlamentares para garantir alguma execução”.
O relatório detalha outros programas sociais com problemas. “O Programa Cisternas, que já atendeu mais de 1 milhão de famílias com tecnologias sociais de acesso à água, não chegará em 2022 nem próximo a 1 mil cisternas entregue”, exemplifica.
“O Programa Fomento Rural teve orçamento reduzido e desvios de função”, dá outro exemplo. “Foram adotados mecanismos de compra ineficientes para a aquisição de cestas básicas e existe um passivo enorme de prestação de contas, a partir de 2023”.
Segundo o relatório, “equipamentos públicos de segurança alimentar, como restaurantes populares, cozinhas comunitárias, bancos de alimentos, centrais de distribuição de alimentos da agricultura familiar, vêm sendo desmontados e os recursos são irrisórios para 2023”.
“Diante do desmonte verificado, a tarefa de reconstruir toda a rede de proteção social representa um enorme desafio”, conclui o texto. “Será necessário retomar a atuação coordenada entre os ministérios para promover o desenvolvimento social com redução da pobreza e das desigualdades e a erradicação da fome no país”.
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