A avaliação de José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde durante quase todo o segundo mandato do ex-presidente Lula e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é de que o chamado “licenciamento compulsório”, termo técnico usado para a quebra de patentes de medicamentos, envolve questões complexas, mas que o Brasil pode se beneficiar de uma política mais agressiva sobre o tema.
De acordo com ex-ministro, uma campanha de vacinação contra a covid-19 organizada nacionalmente em janeiro já poderia ter mudado os rumos trágicos que a pandemia apresenta em seu segundo ano. No entanto, erros do governo brasileiro – e, em menor parte, dificuldades próprias da produção de imunizantes – impediram que isso ocorresse.
Países como África do Sul e Índia já pleitearam em órgãos internacionais que países com capacidade produtiva possam produzir vacinas contra a covid-19, se valendo do momento delicado e ímpar na história para uma espécie de esforço coletivo e internacional. O Brasil, até o momento, não aderiu à proposta.
Temporão tem experiência no tema: em 2007, em seu primeiro ano de mandato, promoveu o licenciamento compulsório do Efavirenz, que compõe um coquetel de medicamentos contra o vírus HIV. O ex-ministro compara a quebra de patente naquela época com o que poderia ocorrer hoje, e como o Brasil poderia tratar a situação.
Confira abaixo a entrevista:
Congresso em Foco: o problema de escassez das vacinas hoje é, em que escala, responsabilidade do governo brasileiro?
José Gomes Temporão: Sabíamos, desde o início [da pandemia de covid-19], no ano passado, que teríamos dificuldades em uma produção de volume de doses significativa e expressiva, que nos permitisse fazer o que fizemos, por exemplo, em 2010, durante minha gestão – quando vacinamos mais de 80 milhões de pessoas em três meses. Hoje no Brasil vacinamos alguma coisa perto de 25 milhões de pessoas com a primeira dose, e já poderíamos estar com 100 milhões ou mais de pessoas vacinadas.
Essa escassez de vacina tem a resposta que, de um lado, Butantan e Bio-Manguinhos não detêm condições estruturais de fornecer todo o número de vacinas e, de outro lado, de erros do governo federal no planejamento estratégico e no acesso às vacinas.
A que se deve o cenário que enfrentamos hoje?
No ano passado, cometemos três erros importantes: o Brasil permitiu que nossa população fosse utilizada para estudos de fase 3 de várias das vacinas contra a covid-19 que hoje estão no mercado – a da AstraZeneca, a do Butantan, a da Pfizer, da Johnson&Johnson foram testadas na população brasileira. E poderíamos ter feito algum grau de contrapartida, do tipo que se permite que se testem as vacinas na população brasileira, mas com a exigência a um acesso diferenciado ao fornecimento das vacinas, tão logo elas estivessem registradas para uso em seres humanos. E isso não aconteceu. Não fizemos nenhuma exigência, nem nenhum tipo de acordo prévio.
Segundo erro: em um primeiro momento recusamos a entrada do fundo Covax, da Organização Mundial da Saúde. Quando entramos, entramos tardiamente e optamos pelo número de doses mais baixo. É um erro não ter tido acesso a um número de doses especialmente maior, e nos vemos com essa decisão equivocada.
Por fim, erramos também quando deixamos de fazer uma prospecção do monitoramento das vacinas que estão sendo desenvolvidas e feito acordos de pré-compra, já entre maio e agosto do ano passado. Inclusive, recusamos propostas de vacinas que nos foram oferecidas por alguns desses produtores. Foram esses três erros muito graves que explicam essa situação de falta de vacinas, no momento que o Brasil mais precisa delas.
Por que hoje é este momento?
Num contexto de circulação de variantes, crescimento acelerado e colapso da rede hospitalar, teria sido muito importante que em janeiro já tivéssemos começado uma grande campanha de vacinação – o que hoje teria mudado, com certeza, de maneira expressiva, o quadro sanitário do Brasil. Parte da explicação deste drama que o país vive hoje está exatamente neste contexto, nestes pontos.
Há uma discussão acalorada e multinacional a respeito do que se convenciona como “quebra de patentes” – e o Brasil tem se colocado até o momento contra este tipo de licenciamento. O senhor considera que esta é a medida mais coerente a ser tomada nesse momento de pandemia?
É uma discussão global importante, mas que precisa ser contextualizada. Primeiro: é uma questão política. Nenhum país do mundo estará seguro enquanto grande parte da população do mundo não estiver protegida pelas vacinas. Daí isso é fácil de compreender: eu posso ter minha população protegida, se eu sou um americano ou inglês ou francês ou italiano ou espanhol, mas não estarei livre da possibilidade de agravamento da situação caso um vírus circule em países com uma baixíssima cobertura vacinal, por falta de acesso às vacinas.
Segundo que é uma questão tecnológica – e existem barreiras importantes, tecnológicas e científicas. Para se produzir vacinas contra covid-19 ou produtos biossimilares ou vacinas genéricas, vamos chamar assim, você precisa ter acesso a um genérico que tenha biodisponibilidade e bioequivalência, que funcione na prática como um medicamento de referência. Hoje se há vacinas RNA ou que utilizam vetores, que são protegidas por patentes e cujos pouquíssimos países que, em tese, poderiam produzir uma versão genérica ou, mais corretamente, biossimilar. Por outro lado, não é implausível pensar que países como a Índia, China e outros, que tenham um bom desenvolvimento da ciência, possam desenvolver e testar vacinas contra a covid-19 biossimilares usando estas tecnologias revolucionárias e disruptivas, caso houvesse um grande acordo mundial em facilitar o acesso destes países à produção por licença, compulsória ou não. Essa questão tecnológica é central.
Há uma especificidade: a vacina de vírus atenuado contra a covid-19, que é a do Butantan, ela utiliza uma plataforma tecnológica muito mais disseminada, mais fácil de ser acessada. Imaginar estímulos financeiros para a ampliação da capacidade instalada em vários países do mundo para a produção de vacinas de vírus atenuado contra a covid-19 poderia ser uma saída muito interessante para o enfrentamento dessa situação.
Por fim, há uma questão regulatória: se por hipótese pudéssemos passar a produzir as vacinas biossimilares em vários outros países: na Índia, na China, no Brasil, essas vacinas teriam de ser submetidas a um teste de fase 3, obrigatoriamente. Teriam de ser conduzidos ensaios clínicos de fase 3 em milhares de pessoas para se comprovar que esta nova vacina biossimilar funciona da mesma maneira que a original patenteada. E isso significa tempo e dinheiro, pois um ensaio de fase 3 toma cinco, seis ou mais meses de testes.
A visão política internacional do Brasil é a melhor para este momento, em sua visão?
O Brasil deveria mudar sua postura para uma mais agressiva, mais afinada com a África do Sul, com a Índia, com países que estão defendendo a possibilidade de produção de vacinas genéricas, seja por acordo de transferência de tecnologia, ou por licenciamento, esta é uma discussão ainda em aberto.
E a questão regulatória não é tão simples: não vamos imaginar que, da noite pro dia, vamos então ter um grande acordo na OMC e começar a produzir milhões de doses de vacinas em vários países. Isso não acontecerá porque há uma questão regulatória a ser superada também.
O licenciamento compulsório do Efavirenz, de 2007 no seu mandato, poderia ser um bom exemplo de comparação com o que poderia acontecer nas vacinas da covid? Ou só a quebra da patente, no caso da vacina, não é o suficiente?
Foram contextos muito diferentes. No caso do Efavirenz era um medicamento químico que já existia o genérico produzido na Índia quando quebramos a patente. Uma das questões centrais do coquetel da AIDS era que não se podia quebrar a patente e correr o risco de deixar os pacientes sem medicamento. Então, no momento em que se quebrou a patente, já havia o acordo de compra do genérico, e não houve interrupção do fornecimento do medicamento.
Enquanto eu comprava o genérico indiano, a Fundação Oswaldo Cruz, através de engenharia reversa, chegou ao princípio ativo, e o desenvolveu – o que permitiu que, cerca de um ano depois da quebra da patente, verticalizar completamente a produção no Brasil, desde o princípio ativo à formulação final.
É um contexto bem distinto do que está acontecendo agora, porque são vacinas, produtos e moléculas muito mais complexas, processos de produção muito diferentes, e ninguém tem condições de produzir uma vacina contra a covid-19 genérica da Pfizer ou da Moderna ou da Johnson&Johnson.
Mas é claro que a decisão política do governo brasileiro naqueles momentos foi extremamente importante. Acho que tá faltando um pouco – e aquele episódio de 2007 nos inspira – é que se deve estar ao lado da saúde pública e ao lado da defesa da vida, por cima dos interesses meramente econômicos ou comerciais das empresas que detém o mercado. 90% do mercado de vacinas no mundo é controlado por cinco empresas, e uma questão como essa tem que estar, num momento tão grave como este, em segundo plano.
Claro que a questão do investimento é importante, claro que são empresas que não são filantrópicas, mas no momento muito singular e muito grave, essas questões deveriam ficar em segundo plano e a equidade deveria se sobrepor.
Olhando em retrospectiva, a ação sobre o Efavirenz foi a melhor decisão? Se justificou com o tempo?
Com certeza. Uma das críticas que se fazia naquele momento era que isso colocaria em risco futuros investimentos na indústria farmacêutica brasileira, e que o Brasil seria alijado do cenário internacional. Aconteceu exatamente o contrário: o mercado brasileiro cresceu dramaticamente, os genéricos continuaram crescendo, o Brasil recebeu novas plantas, novos investimentos. De qualquer ponto de vista aquela decisão se justificou, seja do ponto de vista político, sanitário, da defesa dos pacientes dos portadores de HIV e do desenvolvimento tecnológico brasileiro.
Por mais que sejam contextos diferentes, é possível pensar que um licenciamento compulsório de vacinas possa gerar um cenário positivo para a indústria farmacêutica brasileira no futuro?
Naquele momento se apresentou uma situação que colocava em risco o próprio programa de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS do Ministério da Saúde, que ameaçava a própria segurança dos pacientes e ameaçava a sustentabilidade econômica do programa – então a decisão foi tomada considerando todas estas dimensões.
Recentemente, tivemos algo parecido na questão do tratamento da Hepatite C, onde temos um genérico brasileiro e a farmacêutica judicializou a questão, e até hoje esse genérico brasileiro não pode ser comprado pelo Ministério porque a questão está na Justiça. O governo poderia ter feito o licenciamento compulsório, mas não fez. imagino que mais por questões políticas, uma visão conservadora e atrasada dessa questão.
Claro que cada decisão que você toma dentro desse campo é uma decisão dentro de determinado contexto. Mesmo os EUA já quebraram patentes na defesa dos interesses da saúde pública e da segurança do país. É sim um instrumento importante, que deve ser utilizado sempre que o sistema de saúde e seus pacientes sejam prejudicados de maneira importante, com alguma ameaça de falta de acesso ou preço abusivo. O licenciamento compulsório deveria continuar na agenda de possibilidades de intervenção do governo nesse campo.
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