Gisele Rodrigues *
Notícias sobre movimentações atípicas nas contas bancárias de assessores políticos dão sempre a medida exata da necessidade de se discutir a profusão de cargos comissionados nas diversas esferas da República. As críticas aos gastos da União com o funcionalismo público estatutário (leia-se servidores com estabilidade) são cada vez mais cortina de fumaça para a promiscuidade que pode reger as relações entre agentes políticos e funcionários de gabinete ocupantes dos postos de livre nomeação, os chamados cargos de confiança.
Enquanto se atribui ao servidor público concursado parcela de responsabilidade pelo endividamento do Estado, correm soltas e sem cerimônia as nomeações de alguns assessores que mais servem aos interesses privados do que às reais necessidades da coisa pública. Parece haver, para isso, uma complacência velada da opinião pública, que atribui ao portador de mandato eletivo a prerrogativa sagrada de equipar seu gabinete com quem bem lhe convém: pessoas que, na prática, podem acabar desempenhando tarefas úteis à sua recondução ao cargo.
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Não são de hoje as denúncias que sugerem a transferência, em favor de agentes políticos, de quantias recebidas por assessores contratados com salários oficiais bem maiores que os recebidos por professores, engenheiros e enfermeiros das regiões mais privilegiadas do país. A liberalidade de empregar a peso de ouro, sob critérios pouco rígidos, mais de uma dezena de assessores em cargos que não exigem qualquer especialização seria a porta aberta para uma relação simbiótica em que alguns funcionários retroalimentariam o sistema de uso da máquina estatal.
Em nome de assegurar seus empregos, eles se submeteriam a repassar para o gabinete parte do que recebem: uma espécie de pedágio para que possam garantir o leite das crianças. Em que pese não ser a regra, a prática é vez por outra alvo de investigações, enquanto permanece como objeto de pouca ou nenhuma crítica do establishment político.
Nesse contexto, como servidora pública concursada, afirmo com segurança: não estou entre as causas da falência do Estado. Arrisco dizer que nós, funcionários regidos pela Lei nº 8.112/1990, estamos entre as soluções de muitos problemas de ordem fiscal e econômica do país. Os políticos precisam muito da gente para fazer um bom trabalho.
Vou explicar por quê. Somos nós que podemos dizer “não” quando alguém insiste numa compra sem licitação na repartição. Somos nós que repetimos o “não” quando sugerem a autorização de uma obra sem alvará porque o dono da construtora é amigo do rei. Somos nós que preparamos o edital para garantir o melhor serviço com o menor preço na licitação. Somos nós que elaboramos relatórios de gestão com a prestação de contas de tudo o que a repartição faz. Somos nós que fazemos prospecção de cenários para os ajustes fiscais que precisam passar no Congresso.
Somos nós que entramos com a senha no sistema e liberamos transferências vultosas de recursos para os entes da União. Somos nós que auditamos as contribuições de pessoas físicas e jurídicas para a Receita Federal. Somos nós que fazemos os cálculos atuariais para a reforma da Previdência. Somos nós que damos o parecer jurídico sobre demandas de investigação do Ministério Público.
Somos nós que damos aulas na favela e na escola rural. Somos nós que preparamos a merenda das crianças. Somos nós que alfabetizamos jovens e adultos. Somos nós que fazemos pesquisa de ponta na universidade. Somos nós que salvamos vidas no hospital sem leito, sem gaze, sem raio X. Somos nós que resgatamos as vítimas inocentes da bala perdida. Somos nós que tomamos tiro quando vamos combater o tráfico e prender sequestradores. Somos nós que arriscamos a vida em incêndios em troca de um salário que mal paga o aluguel.
O Estado precisa confiar na gente. Nesse cenário, a estabilidade no emprego nos dá uma certa proteção da qual nos orgulhamos. Podemos dizer “não” sem medo do bilhete azul no dia seguinte. Nosso compromisso não é com o político, mas com a sociedade, que paga nossos salários com os impostos. O “não” que dizemos hoje na repartição pode garantir que haja dinheiro para saúde, educação e segurança amanhã. O nosso “não” é, antes de tudo, proteção para os cidadãos. E, claro, para os políticos também.
A estabilidade não é vilã. Nunca foi. Reduzir o número de servidores públicos concursados ou alterar as regras para a sua permanência no cargo pode ser um tiro no pé.
Antes de se levantar essa bandeira, é preciso entender algumas coisas. Os benefícios que recebemos hoje são os mesmos que os trabalhadores da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) recebem. A nossa aposentadoria segue, já há alguns anos, as mesmas regras da iniciativa privada. Se quisermos receber mais que o teto do INSS, temos que contribuir para um fundo de previdência complementar, como todo cidadão. Não temos as regalias que muitos pensam existir. Sequer temos fundo de garantia.
Já passou da hora de mudar o foco. É irresponsabilidade fechar os olhos para o amadorismo e para o fisiologismo que podem marcar o assessoramento político em muitos gabinetes da República. Não se pode dar a chave do cofre para quem não tem o compromisso de preservar o bem público. O aparelhamento do Estado pode começar, muitas vezes, na contratação do motorista.
* Jornalista há 25 anos e servidora pública federal há 15.
> Comissão do Senado aprova fim da estabilidade para servidores públicos nos primeiros cinco anos
> Relator defende fim da estabilidade para servidor público: “Querem funcionários medíocres?”
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