Claro que você viu. Todo mundo viu. Tava lá na TV. Viu e se enojou com o festival de puxa-saquismo explícito, de sabujice repugnante e de subalternidade oportunista com que alguns representantes do povo desta nobre Pindorama se portaram no dia em que o Congresso se reuniu para homenagear os 30 anos de vigência da Constituição Cidadã.
Chegaram a ser deprimentes algumas cenas de parlamentares forçando escancaradamente a barra para aparecer ao lado de Bolsonaro, o Ungido. Tirar uma selfie com ele. Sentir o cheiro de sua loção de barba. Tudo com o objetivo de tirar uma casquinha ou faturar um carguinho no reino do representante do baixíssimo clero que até outro dia passava despercebido pelos corredores do Congresso. E que agora aguarda que uma certa cadeira lá do Palácio do Planalto seja higienizada dos ácaros das nádegas que a ocuparam para assentar-se nela e lá deixar os seus próprios ácaros.
O povo? Ora, o povo que se dane!
O fenômeno não é novo, diga-se. Com Lula, que também saiu de baixo para igualmente depositar os glúteos na mesma cadeira ocorreu igual fenômeno. De uma hora pra outra o metalúrgico que até então fedia a graxa e suor começou a exalar aromas de Armani Eau de Nuit, e passou a ser objeto da mais deslavada vassalagem, mesmo dos que na véspera o criticavam duramente das tribunas parlamentares.
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Se a sabujice ficasse por aí, embora nojenta seria até suportável. O problema é quando os sabujos se esquecem dos votos recebidos e começam a dar, vender ou leiloar seus apoios de costas aos que os elegeram em troca de benefícios pessoais. Todo dia vêem-se esses gestos de traição explícita. Ouvi de um ex-deputado, já falecido, um depoimento que me marcou. Ele dizia que a virtude que mais prezava num homem público era a lealdade. “Mesmo que essa lealdade implique em se colocar contra os interesses dos que o elegeram?”, provoquei. “Sim. Lealdade acima de tudo”.
Ou seja: o povo que se dane, desde que se assegure a lealdade aos aliados.
Falta compromisso e nitidez ideológica
Muito provavelmente por isso e pelo fisiologismo descarado que preside a maioria das decisões tomadas pelos plenários, a imagem do Congresso ande tão ruim. A ausência de nitidez ideológica também contribui para que o interesse público fique em segundo plano.
Por vezes, a própria conveniência partidária justifica essa postura. Foi o que aconteceu com o PT, quando se recusou, 30 anos atrás, a subscrever a atual Constituição. Igualmente, foi o que aconteceu inúmeras vezes durante os governos petistas, quando a oposição recusou-se a apoiar propostas corretas, necessárias e de enorme interesse público como as legislações a favor das minorias, da educação (como o Bolsa Família, com todos os seus defeitos) e as medidas de proteção ambiental e em favor de quilombolas e povos indígenas.
Todo mundo lava as mãos. E uma mão lava a outra
A última dessas demonstrações desastradas de pouco ou nenhum caso com o interesse público foi a aprovação pelo Senado do reajuste de 16,38% do Judiciário, poder que sistematicamente vem estourando o teto de gastos.
Vários analistas avaliam que a aprovação do reajuste, num momento particularmente delicado das contas públicas do país, decorre da irresponsabilidade com a situação econômica em aliança com a necessidade de muitos parlamentares que têm conta no cartório de garantir um habeas corpus preventivo junto às digníssimas autoridades judiciárias. Temer, curiosamente, afirmou estar “preocupado” com o efeito-cascata do reajuste, quando deveria simplesmente vetá-lo em nome do interesse público.
O diabo é que, na hora em que levantar o bumbum daquela cadeira, e perder portanto o foro privilegiado, passa a ser vulnerável às garras da Justiça. Mas, se conceder o reajuste, conseguirá pelo menos aparar as pontinhas das garras que estão para apanhá-lo pelos crimes de corrupção de que é acusado. Sabe como é: uma mão lava a outra. E, assim, suas excelências vão lavando as mãos para o interesse público.
Juiz quando cai, cai pra cima
Historicamente, tanto o legislativo quanto o Executivo têm sido reféns do Judiciário. Até mesmo nas discussões da Constituinte, que acompanhei de perto, dava pra ver o cuidado em proteger a magistratura. Sabe como é, ninguém sabe o dia de amanhã… A ponto de se aprovar um texto em que é nítida a assimetria entre os poderes, com a perigosa hegemonia do judiciário e todas as consequências daí advindas.
Bem antes da nova Constituição, a Lei Orgânica da Magistratura já estabelecia uma excrecência histórica: a aposentadoria compulsória dos juízes com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço (Lei Complementar 35/1979). Ou seja: no Brasil, juiz não cai pra baixo se cometer algum crime. Cai pra cima, com aposentadoria e vencimentos integrais. Agora, pergunta se alguém tocou nesse privilégio ao longo de todos esses anos, pergunta!
O equilíbrio entre os poderes foi pras cucuias
Parlamentos, segundo os princípios que nortearam sua criação, desde a separação de poderes prevista por filósofos e pensadores iluministas como Monstesquieu, existem para formular leis que irão gerir o funcionamento do Estado. Mas, no Brasil de hoje, o equilíbrio entre os poderes foi pras cucuias e faz tempo. O Parlamento vem sistematicamente se curvando aos dois outros poderes.
Neste ritmo, como avisava Millôr Fernandes, autor da frase que dá título a esta coluna, a qualquer momento, nem que seja metaforicamente, os oprimidos terminarão vendo as nádegas dos Excelentíssimos Senhores Opressores.
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