A um mês da data prevista pelo governo, a privatização da Eletrobras ainda deixa no ar uma nuvem de incertezas sobre o futuro do programa nuclear brasileiro. Funcionários da estatal temem que o acesso da iniciativa privada a informações consideradas sigilosas afetem a segurança do sistema. Eles advertem, ainda, que os termos do acordo, em princípio pouco vantajosos para a empresa que comprar a Eletrobras, resultem no abandono de empreendimentos como a usina nuclear de Angra 3, cujas obras foram iniciadas em 1984 e estão suspensas desde 2015.
Assim como a hidrelétrica de Itaipu Binacional, a Eletronuclear não pode ser privatizada. De acordo com a Constituição, a atividade nuclear é monopólio da União. A Lei 14.182/21, que autorizou a privatização da estatal, estabelece que a Eletronuclear deverá permanecer sob controle da União, mas não detalhou como será feita essa separação. A Eletronuclear e Itaipu serão absorvidas pela recém-criada Empresa Brasileira de Participações (ENBPar), que será o braço estatal da Eletrobras.
As regras desse novo modelo foram definidas pelo Conselho do Programa de Parcerias e Investimentos (CPPI) por meio de resoluções. Em nota técnica encaminhada ao Tribunal de Contas da União (TCU), a Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (Aesel) alerta para os riscos da participação da empresa que vier a assumir a estatal em colegiados considerados estratégicos para a energia nuclear no país. Destaca também o risco de informações sensíveis serem compartilhadas com governos estrangeiros.
Para o presidente da Aesel, Ikaro Chaves, o modelo desenhado para a Eletronuclear com a privatização da Eletrobras é um “tiro no escuro”. “Energia nuclear é algo muito sério. Estamos tendo uma semiprivatização do programa nuclear brasileiro, o que é muito grave e um risco para a segurança nacional”, disse Ikaro ao Congresso em Foco.
A reportagem procurou a Eletronuclear para comentar o assunto, mas foi orientada a entrar em contato com a Eletrobras, que se recusou a responder aos questionamentos apresentados, inclusive sobre o valor gasto com Angra 3 até o momento. “A empresa decidiu não responder à demanda”, informou a assessoria de comunicação da estatal.
Negociações frustradas
A Eletronuclear foi criada em 1997 com a finalidade de operar e construir usinas termonucleares no Brasil. Subsidiária da Eletrobras, a empresa é uma sociedade de economia mista que responde pela geração de aproximadamente 3% da energia elétrica consumida no Brasil.
Atualmente estão em operação as Usinas Termonucleares (UTN) Angra 1, com capacidade para geração de 640 megawatts elétricos, e Angra 2, de 1350 megawatts elétricos. Com obras paralisadas desde 2015, após denúncias de corrupção, Angra 3 deve gerar 1405 megawatts.
Nos últimos anos, a Eletronuclear negociou com empresas dos Estados Unidos, da França, da Coreia do Sul, do Japão, da Rússia e da China participação na conclusão das obras de Angra 3. Chineses e russos demonstraram interesse em entrar como sócios minoritários e chegaram a oferecer R$ 3 bilhões pela parceria ao longo de três anos, mas o governo federal vetou o negócio.
Sociedade
De acordo com resoluções do Conselho do Programa de Parcerias e Investimentos, a Eletrobras, depois de privatizada, será sócia da ENBPar na Eletronuclear. Atualmente, a Eletrobras controla 99% do capital acionário total da Eletronuclear. Depois da privatização, ficará com 70% do capital da empresa, que terá de transformar suas ações ordinárias em preferenciais. Com isso, o controle da Eletronuclear ficará com a ENBPar.
Na nota ao TCU, a Aesel chama a atenção para eventuais inconstitucionalidades na modelagem da Eletronuclear. Um dos pontos contestados é o privilégio que a Eletrobras privada terá na sociedade com a Eletronuclear, em detrimento de outras empresas eventualmente interessadas.
“Tal arranjo fere flagrantemente os princípios da impessoalidade e da moralidade na administração pública”, diz a associação. “Apenas a pressa em privatizar a Eletrobras justifica um arranjo, no qual, uma determinada empresa privada será privilegiada dentre todas as demais pessoas físicas e jurídicas do país”, prossegue.
Técnicos e engenheiros da Eletrobras também contestam a participação paritária da nova Eletrobras, com a ENBPar, em colegiados para planejamento e execução das obras e licitações de Angra 3.
Um dos artigos da Resolução 221 do CPPI estabelece a “celebração, entre a Eletrobras e a ENBPar, de acordo de investimentos prevendo” “a composição de comissão especial de licitação para a Usina Termonuclear Angra 3, com gozo de autonomia para seleção dos fornecedores de bens e serviços, incluindo financeiros, para viabilização do projeto”. Pela norma, haverá composição paritária, sendo dois indicados pela ENBPar, dos quais ao menos um deverá ser empregado ou administrador da Eletronuclear, dois membros indicados pela Eletrobras e um membro independente, escolhido em comum acordo entre a a empresa privada e a estatal.
Coangra
A resolução também modifica o estatuto da Eletronuclear no sentido de criar um comitê para assuntos voltados ao planejamento e execução da Usina de Angra 3, o Comitê Estatutário de Acompanhamento do Projeto da Usina Termonuclear Angra 3 (Coangra). O comitê funcionará até o início da operação comercial de Angra 3, com a finalidade de assessorar o Conselho de Administração da Eletronuclear. Entre suas tarefas estão a análise e o posicionamento prévio sobre contratações de bens, serviços, obras, financiamentos e garantias vinculados ao projeto.
O Coangra será composto por cinco membros – dois indicados pela ENBPar, dois pela futura Eletrobras e um integrante externo indicado em comum acordo pelas duas empresas. “Esses comandos são claramente inconstitucionais, pois colocam uma empresa privada, no caso a Eletrobras privatizada, em iguais condições de decisão sobre um aspecto crucial da futura UTN Angra 3, como a implantação da mesma”, diz a Aesel.
O presidente da associação critica a presença de representantes da empresa privada no comitê. “Haverá participação de representante de uma empresa em um assunto que é monopólio da União. Controle de uma empresa não é compartilhamento de dados. A Constituição Federal fala em monopólio da União em energia nuclear. Não deveria ter participação de indicado por empresa privada na supervisão de obras. Essa pessoa terá acesso a segredos industriais. Isso é informação muito sensível para ser disponibilizada”, critica Ikaro Chaves.
Segurança nacional
Mesmo sob controle da União, a Eletronuclear será uma empresa majoritariamente privada. Na prática, a execução do projeto de Angra 3 passará a ser comandada de forma paritária pela ENBPar estatal e pela Eletrobras privada, com todos os riscos, inclusive de segurança das instalações.
Para a Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras, a mudança no modelo expõe a vazamento informações sensíveis do programa nuclear brasileiro. Criado em 1980, o Sistema de Proteção ao Programa Nuclear Brasileiro (Sipron) é restrito hoje às Indústrias Nucleares do Brasil S.A. (INB); à Eletrobras; às concessionárias de serviços de energia elétrica, autorizadas a operar usinas nucleoelétricas; e a entidades de ensino e de pesquisa científicas – federais, estaduais ou privadas – que participem em projeto ou atividade nuclear ou, ainda, que possuam instalação nuclear no país.
Atualmente, com exceção dos órgãos de ensino e pesquisa científica, os integrantes do Sipron estão vinculados à administração pública federal, porque as usinas nucleoelétricas são monopólio da União, como forma de assegurar a proteção do Programa Nuclear Brasileiro. Com a privatização, a empresa que comprar a Eletrobras também participará do Sipron.
Em todo o mundo, as tecnologias nucleares são consideradas sensíveis e tratadas como assuntos de Estado. A transferência desse tipo de tecnologia, quando ocorre, é apenas nos marcos de tratados bilaterais e de forma limitada.
“O diretor financeiro da Eletronuclear será indicado pela Eletrobras privatizada. Ele terá poder inclusive sobre as despesas com segurança, de engenharia. Qual garantia temos que esse diretor da Eletrobras não vai usar suas prerrogativas par que o projeto fique o mais barato possível em detrimento da segurança, da proteção do meio ambiente e das vidas”, questiona o presidente da Aesel.
Tarifa indefinida
No documento entregue ao TCU, a entidade alerta que o modelo de privatização da Eletrobras também não projeta tarifa da energia da Usina de Angra 3. A informação é considerada fundamental para se analisar a viabilidade da conclusão do empreendimento e para saber quanto a energia produzida pela usina custará ao contribuinte brasileiro.
Hoje a tarifa está estimada bem próxima dos 1.000 R$/MWh a serem pagos pelos consumidores brasileiros do Ambiente de Contratação Regulado (ACR) pelos próximos 50 anos. O preço médio da energia vendida pela Eletrobras em suas usinas cotizadas é de 65 R$/MWh.
De acordo com resolução do CPPI, a Eletrobras e a ENBPar terão de buscar financiamento para Angra 3 conforme a proporção de suas participações no capital social. Como a nova estatal não possui ativos, não terá condições de oferecer garantir para os financiamentos que vier a captar. Nesse caso, a garantia terá de ser dada pela própria União.
Risco de abandono
Para a Aesel, é grande a possibilidade de a Eletrobras abandonar de vez a participação na Eletronuclear diante de condicionantes que podem ser pouco atraentes para a nova controladora da estatal.
A empresa terá de converter suas ações ordinárias em preferenciais, sem nenhuma indenização em troca. Também terá de capitalizar a Eletronuclear, buscar financiamento para uma obra que já se arrasta há quase 40 anos e sem saber se seu sócio, a ENBPar, conseguirá assumir sua parte. A empresa também não sabe o valor da tarifa da energia que venderá.
O acordo de acionistas a ser celebrado entre a Eletrobras privatizada e a ENBPar já prevê a possibilidade da saída dos novos controladores da sociedade na Eletronuclear. O mesmo acordo de acionistas prevê o direito de preferência da ENBPar na compra da participação da Eletrobras na Eletronuclear. Na prática, a qualquer momento a Eletrobras poderá se desfazer de sua participação na Eletronuclear, sustentáculo do Programa Nuclear Brasileiro.
Pelo acordo, se quiser adquirir a participação da Eletrobras, a União terá de desembolsar mais de R$ 12,4 bilhões. A Eletrobras também poderá vir a ter como sócio qualquer empresa privada que venha a escolher. “A Eletrobras privatizada pode, por conveniência sua, vender sua participação para fundos soberanos ou estatais de outros países que tenham interesse em prejudicar ou obter alguma vantagem estratégica no Programa Nuclear Brasileiro, em detrimento dos interesses nacionais brasileiros”, alerta a Aesel.
38 anos de obra
A Eletronuclear é considerada peça-chave no Programa Nuclear Brasileiro. A subsidiária compra o combustível produzido pelas Indústrias Nucleares Brasileiras (INB) e viabiliza todo o programa nuclear do país, tendo no último ano aumentado em 50% o desembolso para pagamento do combustível nuclear.
As obras, iniciadas em 1984, estão paradas há sete anos. Em janeiro, o Conselho de Administração da Eletrobras aprovou o consórcio vencedor da licitação para a realização das obras do Programa de Aceleração do Caminho Crítico da usina de Angra 3. A medida permite a retomada das obras. Para essa etapa está prevista a construção do prédio que vai abrigar o reator e os prédios de segurança da usina.
Segundo o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, o investimento em energia nuclear faz parte dos esforços de diversificação da matriz energética brasileira. “Isso faz parte de um processo. Essa usina de Angra 3 é uma retomada que o governo do presidente Bolsonaro. Depois de mais de seis anos parada, nós conseguimos retomar o processo. E é uma usina que vai trazer mais segurança energética para o nosso país, é vital para o nosso sistema elétrico. E nós pretendemos concluí-la até o final de 2025, para entrar em operação em 2026”, afirmou Albuquerque após a aprovação da licitação. As obras licitadas terão custo de cerca de R$ 300 milhões.
De acordo com o ministro, também está prevista a construção de uma quarta usina nuclear até 2030. A Eletrobras estima que, quando concluída, Angra 3 vai abastecer metade do consumo de energia do estado do Rio de Janeiro. As obras da usina foram paralisadas em julho de 2015 em meio à Operação Radioatividade, desdobramento da Lava Jato.
Lava Jato
Na ocasião, o então presidente da Eletronuclear, o vice-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, foi preso pela Polícia Federal, suspeito de ter recebido cerca de R$ 4,5 milhões de propina do consórcio vencedor da licitação para a montagem de Angra 3.
Segundo a Lava Jato, o consórcio formado pelas empresas Camargo Corrêa, UTC, Andrade Gutierrez, Odebrecht, EBE e Queiroz Galvão repassava recursos para empresas intermediárias, que encaminhavam a propina a Othon. O vice-almirante foi preso e condenado em primeira instância pelo juiz Marcelo Bretas, do Rio de Janeiro, a 43 anos de prisão.
No final de março, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região decidiu reduzir a punição imposta ao ex-presidente da Eletronuclear para quatro anos e dez meses de reclusão. A pena, no entanto, foi convertida em alternativa, com prestação de serviços à comunidade e outras restrições. Essa é a segunda paralisação das obras de Angra 3. A primeira aconteceu em 1986, quando o país atravessava uma crise econômica que afetou a área de infraestrutura e reduziu os investimentos no setor. O projeto foi retomado em 2010.
Privatização em maio
O governo Bolsonaro pretende privatizar a Eletrobras em maio. Na semana passada o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Aroldo Cedraz disse que deve levar a privatização da Eletrobras “em breve” para o plenário, mas não citou uma data para a apresentação.
A proposta prevê a privatização da Eletrobras pela oferta de ações. A ideia é reduzir para 45% a participação votante da União, perdendo assim o controle da empresa. O governo, no entanto, quer manter o poder de veto para decisões estratégicas, o chamado golden share.
O governo estima um valor de R$ 67 bilhões com a privatização da Eletrobras. O TCU analisa a segunda etapa do processo de privatização, que trata da estrutura societária, do modelo de controle e do método para definir o preço mínimo das ações. A primeira fase foi aprovada em fevereiro, com a definição de R$ 25 bilhões, em outorga, e de R$ 32 bilhões para a Conta de Desenvolvimento Energético, que serve para amenizar as contas de luz.
No julgamento, o ministro Vital do Rêgo fez críticas ao modelo proposto de privatização. Segundo ele, os cálculos estão errados e a empresa não poderia ser negociada por menos de R$ 130 bilhões. De acordo com Vital, houve três falhas na precificação da estatal: o preço da energia elétrica no longo prazo, que não inclui a variável de potência, a taxa de desconto dos fluxos de caixa e o risco hidrológico. O ministro afirma que a modelagem apresentada ignora a potência instalada das usinas, que somam 26 mil MW.
A privatização da Eletrobras não depende do aval do TCU para ocorrer, mas a equipe econômica espera o desfecho do julgamento para dar maior segurança jurídica ao negócio, já que cabe ao tribunal fiscalizar os processos de desestatização do governo federal. Inicialmente o governo prevê que o leilão poderá ser feito em 13 de maio.
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