Fabiano Angélico *
Você nem deve ter percebido, mas em 2020 houve uma mudança importante no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Colegiado vinculado ao Ministério da Economia, o Carf é um tribunal administrativo que tem a função de julgar os recursos apresentados contra autos de infração lavrados pela Receita Federal e tem composição paritária – metade dos integrantes são representantes do fisco e a outra metade dos contribuintes – isto é, cidadãos. Tem-se aqui uma relação de igual para igual entre e Estado e Sociedade, veja você.
A importante mudança recente no Carf foi o fim do “voto de qualidade”. Antes, funcionava assim: em caso de empate, o presidente de cada uma das turmas do tribunal (são várias) podia desempatar o jogo, e como o presidente dessas turmas são sempre representantes do fisco, o resultado esperado era em favor dos cofres públicos.
Com a justificativa de que seria fundamental aumentar o peso da participação da Sociedade e reduzir a mão pesada do Estado nas decisões do Carf, extinguiu-se o “voto de qualidade” – e, desde abril de 2020, em caso de empate, a causa é resolvida em favor do contribuinte. Isto é, à presença importante de representantes não eleitos e não vinculado ao Estado em um órgão deliberativo estatal, que já vigora há bastante tempo, somou-se a vantagem de jogar com o regulamento no bolso, jogar pelo empate.
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A justificativa de que a participação da sociedade em decisões importantes é algo necessário, porém, não sensibiliza o atual governo quando se trata de comissões e colegiados de políticas públicas criados a partir da Constituição de 1988. Ao contrário: segundo estudo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), três de cada quatro desses colegiados foram extintos ou esvaziados desde o começo de 2019.
O Brasil é conhecido internacionalmente pela inovação em promover a participação da sociedade em políticas públicas. Experiências como orçamento participativo e o Portal da Transparência (este, criado bem antes da Lei de Acesso à Informação) são estudadas e saudadas mundo afora. É por essa razão, aliás, que o Brasil foi convidado pelo Governo Obama, no distante ano da graça de 2011, a liderar a plataforma Parceria para Governo Aberto, conhecida como OGP, sua sigla em inglês (Open Government Partnership). A primeira cúpula da OGP ocorreu em Brasília em 2012 e teve a presença da então presidente Dilma Rousseff e da então Secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton.
PublicidadeParticipação e transparência, entretanto, estão em baixa no governo Bolsonaro – se você não for um grande contribuinte, é claro.
No caso da transparência, há diversos relatos, de jornalistas, pesquisadores e usuários da Lei de Acesso à Informação (LAI) em geral, de que alguns conjuntos de dados não mais estão no Portal da Transparência e de que pedidos de acesso informação pública com base na LAI têm sido cada vez com mais frequência recusados ou respondidos de forma incompleta e/ou insatisfatória.
Neste novembro de 2021, completam-se dez anos da LAI (Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011). Como forma de homenageá-la, deixo aqui uma proposta provocativa: alterar a Comissão Mista de Reavaliação Informações (CMRI), para que tenha a mesma configuração paritária do Carf e com a mesma regra de desempate.
Atualmente, o CMRI, órgão colegiado do Governo Federal que atua como última instância recursal administrativa na análise de negativas de acesso à informação pública, é composto por representantes de dez ministérios. Que tal alterá-la para que tenha, assim como no Carf, uma composição paritária? Metade dos integrantes seriam representantes dos ministérios e outra metade representantes dos requerentes de informação pública. E, assim como o Carf resolve os desempates em favor do contribuinte, o CMRI também resolverá os casos de empate em favor do cidadão que busca uma informação detida ou produzida pelo Estado. Que tal?
A participação e a transparência devem ser para valer, em todas as áreas de atuação do Estado. É inaceitável que inovações nas relações entre Estado e Sociedade sejam usadas e mobilizadas em favor de grupos com mais poder e influência, apenas.
Que a Lei de Acesso à Informação e outras leis, práticas e políticas públicas inovadoras possam sobreviver a esses tempos estranhos.
* Fabiano Angélico é mestre e doutorando em Administração Pública (FGV EAESP), com especialização em transparência na Faculdade de Direito da Universidade do Chile. Autor do livro “Lei de Acesso à Informação Reforço ao Controle Democrático” e de vários capítulos de livros e artigos sobre transparência publicados no Brasil e no exterior. Atualmente é consultor externo do Banco Mundial e da ONU e pesquisador visitante na USI (Università della Svizzera Italiana), na Suíça.
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