O Ministério da Cidadania realizou, nesta quinta-feira (16), leilão para a compra de 1,26 milhão de cestas básicas destinadas aos povos indígenas, buscando atender uma ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) para retirar da insegurança alimentar famílias dos povos originários, afetados pela pandemia de covid-19. A compra, orçada em R$ 173,3 milhões, não deve no entanto ser suficiente para atender todas as famílias indígenas, além de contar com menos itens que as listas de cestas básicas além de ultraprocessados. No lugar de alimentos frescos, como frutas, entram “350g [de] rosquinha de coco, café e leite em pó” a serem entregues mensalmente aos povos originários brasileiros, desrespeitando os hábitos alimentares dos indígenas.
A licitação só foi realizada após a suprema corte determinar à União a formulação de um plano de enfrentamento e monitoramento à covid-19 para os povos indígenas brasileiros. Na decisão, tomada pelo Plenário da corte no dia 5 de agosto de 2020 – há treze meses – os ministros seguiram um voto do ministro Luís Roberto Barroso que, entre outras ações, obriga a distribuição de alimentos, “com vistas a mitigar a insegurança alimentar enquanto durar a pandemia”.
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Apenas em junho de 2021 o Ministério da Economia garantiu o crédito extraordinário para a campanha de alimentação. Ao encaminhar a licitação, um ano depois, o governo federal não tinha ao certo o número de famílias que iria atender, por seis meses, com a entrega de cestas mensais.
“A Funai informou que, em todo país, existem cerca de 210.137 famílias indígenas, mas que este número ainda seria confirmado junto às Coordenações Regionais”, indica o Ministério no documento que justifica a licitação. Foi com base neste número que a pasta calculou em 1.260.822 o número de cestas necessárias para atender estas famílias pelos seis meses.
Logo em seguida, o Ministério relata que a Funai, ligada ao Ministério da Justiça, refez os números e redefiniu em 233.117 o número de famílias indígenas em todo o país. Ao final de seis meses, a campanha do governo poderia ter um déficit de quase 138 milhões de cestas. Como o governo planeja gastar R$ 125 em cada cesta, o valor do que pode faltar passa de R$17,2 milhões, chegando a R$19 milhões com os gastos logísticos de distribuição.
O próprio valor total da licitação, de R$ 173 milhões, já está comprometido, reconhece a pasta, uma vez que a inflação está saindo do controle – a inflação de alimentos já passa dos dois dígitos. “Com a inflação crescente sobre o preço dos alimentos e do combustível, provavelmente o custo médio estimado para as aquisição e distribuição de cestas esteja defasado e este custo seja ainda maior”, escrevem os autores da licitação. “Desse modo, o maior número de famílias a serem atendidas e o custo maior no preço e distribuição das cestas impacta diretamente na capacidade de atendimento deste Ministério com o recurso por hora [sic] disponível.”
PublicidadeNo site do Ministério da Cidadania, ainda não há o resultado da empresa vencedora.
Lista deficitária
O Ministério comprará sete cestas diferentes, que devem pesar 20 kg, conter de oito a dez itens e, segundo a Funai, levará em consideração aspectos culturais de algumas regiões do país e o hábito alimentar indígena local: na cesta destinada a indígenas do Mato Grosso do Sul, há a presença de “um quilo de erva-mate”, enquanto alguns povos de outras regiões receberão o mesmo tanto em “café torrado e moído”. Há a presença de um a três quilos de leite em pó na lista, uma vez que o transporte e armazenamento a regiões isoladas dificulta o envio de leite in natura.
Mas a cesta, no instante que for enviada aos indígenas, não conterá parte dos itens previstos na cesta básica do brasileiro. Um decreto-lei de 1938, assinado por Getúlio Vargas, cita treze itens que compõem a cesta básica: quatro deles estão presentes em todas as listas do governo (feijão, arroz, açúcar e leite), enquanto outros itens aparecem em formas distintas, como farinha de mandioca ou fubá. Uma lata de óleo aparece em seis das sete listas.
Outros itens listados como “cesta básica” pelo Decreto-lei não constam na lista de compras do governo, como carne, batata, legumes, pão francês e manteiga. Frutas também fazem parte da lista mas o governo, hoje, troca os alimentos in natura por um pacote de rosquinhas de coco, incluso em todas as cestas. Da mesma forma, será destinado “um quilo de macarrão espaguete” aos indígenas. O critério de compra do governo é o menor preço global.
O que diz o Ministério
O Congresso em Foco buscou o Ministério da Cidadania para entender como se deu a concepção da cesta, e se este envio de alimentos é rotineiramente feito pela pasta ou é excepcional para atender a ordem do STF. Também foi questionada a falta de itens em relação à cesta básica, assim como a escolha por itens ultraprocessados como a rosquinha de coco.
A pasta disse que as ações se encaixam dentro de um programa chamado “Brasil Fraterno”, e que possui diretrizes “para garantir o acesso à alimentação saudável às famílias em situação de vulnerabilidade, principalmente durante o período da pandemia do novo coronavírus.”.
Sobre a rosquinha de coco, o Ministério garantiu que a solução tem base econômica e nutricional. “Vale destacar que o produto, além de atender aos requisitos de combate à insegurança alimentar devido ao valor nutricional, também apresenta custo baixo, pois conta com incentivos fiscais”, buscou ressaltar a pasta.
A definição do Ministério vai contra uma diretriz que, em tese, é adotada pelo próprio governo federal: no Guia Alimentar para a População Brasileira, produzido pela Ministério da Saúde e considerado referência mundial em saúde alimentar, as rosquinhas entram na categoria de alimentos que “devido a seus ingredientes [..] são nutricionalmente desbalanceados”.
Por afetar de modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente, seu consumo deve ser evitado. “Quando consumimos alimentos ultraprocessados, tendemos, sem perceber, a ingerir mais calorias do que necessitamos; e calorias ingeridas e não gastas inevitavelmente acabam estocadas em nosso corpo na forma de gordura. O resultado é a obesidade”, concluem os autores do manual.
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