Hoje, segunda-feira, 10 de dezembro, celebramos os 70 anos do documento público mais traduzido do mundo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, transcrita em 514 diferentes idiomas do planeta.
Na quinta-feira, 13 de dezembro, lembraremos os 50 anos do maior golpe contra os direitos humanos no Brasil: a edição do AI-5, o ato institucional mais implacável da ditadura de 21 anos que, a partir do golpe de 1º de abril de 1964, agrediu duramente os direitos humanos e políticos de milhares de brasileiros – perseguidos, presos, interrogados, torturados, mortos, desaparecidos, exilados ou cassados pelo regime dos generais.
E dentro de três semanas, na primeira terça-feira de 2019, primeiro dia do novo ano, teremos os militares de volta ao poder, 34 anos após a queda da ditadura em 1985.
Em 1964, os generais tomaram o poder pela força das armas e dos tanques.
Em 2018, os generais voltam ao poder pela santidade do voto popular.
Os militares brasileiros retomam o comando do país porque nós, o povo, elegemos o capitão Jair Bolsonaro e, com ele, seus camaradas de tropa. Esse é o paradoxo, essa é a tragédia da democracia brasileira.
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A civilização do processo político é a radicalização do poder civil. A generalização do poder, pela exagerada presença e ingerência dos generais, é a degradação da política.
Nenhuma grande democracia no mundo dá tantos poderes aos generais.
Nem os cinco generais-presidentes da ditadura de 1964 deram tanto espaço aos militares como o capitão-presidente da democracia de 2018.
O primeiro deles, o marechal Castello Branco, tinha só 5 oficiais-generais em seu ministério. O segundo, general Costa e Silva, teve 7 militares no seu gabinete. O terceiro, general Garrastazú Médici, acolheu outros 7 militares. O quarto, general Ernesto Geisel, convocou também 7 militares para sua equipe. O último da ditadura, general João Figueiredo, abrigou 6 militares.
O novo governo terá 9 militares em postos chaves do ministério: Um general no Gabinete de Segurança Institucional – Augusto Heleno. Um general na Defesa – Fernando Azevedo e Silva. Um general na Secretaria de Governo – Carlos Alberto dos Santos Cruz. Um almirante nas Minas e Energia – Bento Costa Lima. Um general na Comunicação – Floriano Peixoto Vieira Neto. Um general na Secretaria de Assuntos Estratégicos – Maynard Marques de Santa Rosa. Um tenente-coronel na Ciência e Tecnologia – Marcos Pontes. Um capitão na infraestrutura – Tarcísio Gomes de Freitas. Um capitão na Transparência, Fiscalização e CGU – Wagner Rosário.
São nove militares, sem contar o capitão presidente e o seu vice, general Hamilton Mourão. A overdose de militarismo revive a Guerra Fria e sua paranoia anticomunista. O muro de Berlim caiu no final da década de 1980, mas ele continua de pé no entorno de Bolsonaro, que vê ameaça marxista em tudo.
O capitão escolheu como chanceler um diplomata do baixo clero do Itamaraty, Ernesto Araújo, que como ele idolatra Donald Trump, “o único que pode salvar o Ocidente”. Missão dada ao chanceler por Bolsonaro, segundo ele: “Libertar o Itamaraty do marxismo cultural!”.
Araújo quer levantar “barricadas contra a China maoísta que dominará o mundo!”. Alguém precisa avisá-lo que a China pode ser qualquer coisa, menos maoísta… O chanceler esperto de Bolsonaro diz que os defensores do aborto querem “uma sociedade onde ninguém nasça, nenhum bebê, muito menos o menino Jesus…”.
Araújo diz ter uma missão divina: “Ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista, um sistema anti-humano e anticristão pilotado pelo marxismo cultural. A fé em Cristo significa lutar contra o globalismo… abrir-se para a presença de Deus na política e na história”. Traduzindo isso aí, como diz Bolsonaro: o Brasil acima do globalismo, Deus e Trump acima de todos…
Os direitos humanos — que hoje celebramos aqui — estarão sempre ameaçados quando a estupidez oblitera a inteligência.
O primeiro nome pensado para a Educação foi o de um respeitado ex-reitor da universidade de Pernambuco. Não emplacou porque Mozart Neves Ramos foi vetado pela bancada evangélica. O sonho da bancada era Guilherme Schelb, um procurador abilolado com a discussão sobre gênero em sala de aula. Diz ele: “Crianças de 8, 9 anos, recebem como dever de casa quesitos sobre sexo grupal, como dois homens transam, o que é boquete…”.
Schelb não disse onde viu isso, não provou nada do que disse, mas mereceu uma longa audiência com Bolsonaro, dia 22 de novembro, até ser descartado como ministro.
Para a Educação, o capitão não chamou um general, mas alguém que os forma. O colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, brasileiro naturalizado há 20 anos, é professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), passagem obrigatória para majores e tenentes-coronéis que ambicionam ser generais, o topo da carreira. O homem da Educação de Bolsonaro é, como seu capitão comandante, um nostálgico da ditadura. Vélez escreveu no seu blog: “1964 é uma data para lembrar e comemorar… ela nos livrou do comunismo”.
Vélez criticou a Comissão Nacional da Verdade, que investigou as violações aos direitos humanos pela ditadura militar e responsabilizou os cinco generais-presidentes pelos 434 casos de mortes e desaparecimentos praticados por 377 agentes públicos do regime militar, sempre louvado por Bolsonaro e seus camaradas. Para o novo ministro, a CNV foi “mais uma encenação para a ‘omissão da verdade’… a iniciativa mais absurda que os petralhas tentaram impor”.
Assombrado pelos demônios da Guerra Fria, Vélez diz que “os regulamentos do MEC fizeram os brasileiros reféns de um sistema de ensino afinado com a tentativa de impor à sociedade uma doutrinação de índole cientificista e enquistado na ideologia marxista…” E por aí vai o emérito professor dos futuros generais!
Não por acaso, os dois ilustres ministros do capitão-presidente atendem a uma sugestão de um bizarro brasileiro enquistado há uma década em Petersburg, uma pequena cidade de 30 mil habitantes no Estado americano da Virgínia. Olavo de Carvalho é um exótico ex-astrólogo que se tornou guru do clã Bolsonaro e da direita radical brasileira.
Muçulmano e marxista na juventude, Olavo agora se diz filósofo (embora não tenha título universitário) e se converteu depois em cristão fundamentalista e em conservador extremado. Na sua alucinada arrogância supostamente intelectual, Olavo tem a audácia de atacar alguns dos gigantes que moldaram o pensamento da humanidade. O ex-professor de astrologia e alquimia diz que Isaac Newton disseminou o vírus da burrice na Terra, Galileu Galilei era charlatão, Charles Darwin é o pai do nazismo e Albert Einstein não passa de uma fraude.
Da cabeça amalucada de Olavo, que faz a cabeça do capitão-presidente, brotaram algumas das frases mais grotescas e cômicas da atualidade. Alguns exemplos: “O general Geisel era comunista”, “cigarro não dá câncer”, “o nazismo e o FMI são de esquerda”, “a Pepsi-Cola usa fetos abortados como adoçante”, “não há provas de que o Sol seja o centro do sistema solar”… Uma das brilhantes constatações científicas de Olavo começa por uma pergunta: “Você entende um cachorro, a cabeça de um gato? Não entende. Mas você tem amor por eles… A mulher, também. Não é para entender, meu filho…”
Olavo é autor de um best-seller que já vendeu 320 mil exemplares: O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Pelo conteúdo impagável de suas ideias delirantes, Olavo certamente não leu seu próprio livro…
Em 1962, pouco antes do golpe militar, dois autênticos gênios da cultura brasileira, que não devem habitar o universo olavista, conversavam no Bar Veloso, santuário carioca da Bossa Nova em Ipanema. O humorista Millôr Fernandes definiu, aliviado, para seu amigo, o compositor Tom Jobim: “O mundo tem muitos idiotas, Tom, mas felizmente estão todos nas outras mesas…” O admirável mundo novo da Internet, para nosso desconsolo, agora trouxe gente como Olavo de Carvalho para as mesas de todos nós!
É dele a expressão “alarmismo climático”, que Bolsonaro e outros ilustres seguidores do olavismo sem fronteiras usam para desdenhar do aquecimento global — uma evidência cada vez mais assustadora comprovada pelos cientistas, pelos satélites da NASA e pelo noticiário intenso e crescente de todo dia na TV sobre inundações, secas, destruição de rios e florestas. São os efeitos dramáticos da ação desordenada de líderes arrivistas e governantes complacentes que ajudam a agredir o meio ambiente da Terra, o lar de todos nós — até mesmo de Bolsonaro e seus olavistas.
Um relatório assustador de outubro passado da ONG WWF (World Wildlife Fund) revelou que, de 1970 para cá, a população de mamíferos, pássaros, peixes e répteis diminuiu em 60%. Nos últimos 50 anos, desapareceram 20% da vegetação da Amazônia, o maior pulmão do planeta. Se chegar a 25%, a grande floresta entrará num colapso sem volta. O Brasil, maior fronteira de desmatamento do mundo, já perde 1,4 milhão de hectares de vegetação natural por ano — o equivalente a mais da metade do Estado de Alagoas.
Inspirado em seu avatar Donald Trump, Bolsonaro ameaça deixar o Acordo de Paris, um tratado arduamente costurado durante meses por quase 200 nações do mundo e selado em 2015. Para provar que fala sério, o capitão já desistiu de fazer, no Brasil, a próxima Conferência do Clima, a COP 25, que estava marcada para 2019. O olavismo predatório devasta as poucas áreas de sensatez e de consciência do país.
Anunciado só ontem, domingo (9), sintomaticamente a última escolha ministerial de Bolsonaro, o novo ministro do Meio Ambiente, o advogado Ricardo Salles, fundador do Movimento Endireita Brasil, já bateu continência para o desatino que deve colocar o Brasil na contramão da inteligência: “A discussão sobre aquecimento global é secundária. Essa discussão agora é inócua…”.
O penúltimo ministro anunciado por Bolsonaro foi a pastora evangélica Damares Alves, que vai cuidar dos Direitos Humanos. O repórter Bernardo Mello Franco, de O Globo, revelou sua crença maior, confessada no púlpito de uma igreja batista em Belo Horizonte, em maio de 2016, e que contraria frontalmente o princípio constitucional do Estado Laico: “Chegou a nossa hora. É o momento da igreja de Jesus ocupar a nação. É o momento da igreja governar. As instituições piraram. Só uma não pirou: é a igreja de Jesus. Se a gente não ocupar esse espaço, Deus vai cobrar da gente. A escola não é mais lugar seguro para nossos filhos. Todas as instituições estão falidas. O único lugar em que seu filho está protegido, nesta nação, é o templo, é a igreja…”.
Essa é a inacreditável barafunda de pensamentos obtusos, definições esdrúxulas, bobagens explícitas, boçalidade galopante e rombuda ignorância que parece intumescer alguns cérebros ilustres do futuro Governo Bolsonaro.
São características assustadoras que resumem uma overdose acumulada de militarismo redivivo, uma visão retrógrada da realidade, um claro preconceito intelectual, um medieval fundamentalismo religioso e uma absurda repulsa a marcos civilizatórios consagrados nos países mais avançados e abertos do mundo.
O Brasil de Bolsonaro — de seus avatares autoritários e astrólogos influentes, de seus diplomatas e professores impregnados da ideologia que fingem combater, de seus fanáticos siderados pela fé e pela salvação divina — ameaça iniciar uma marcha batida pelos coturnos da insensatez, na contramão do progresso, da inteligência e da história.
Tenho 67 anos, dois filhos e três netos lindos. Estou angustiado, temeroso pela visão de Brasil e pelo futuro que os aguarda na escola, no convívio da sociedade, na vida.
É por tudo isso que sou, hoje, um homem apreensivo e cético em relação aos direitos humanos que o país do capitão Jair Bolsonaro nos reserva.
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