Para inaugurarmos a era da promessa iluminista, enfim, de nossa cultura, como tenho defendido, temos de superar definitivamente a hegemonia barroquista em que estamos enredados há quatro séculos. Todo cuidado é pouco para superar de fato nosso impasse civilizatório e vislumbrar uma nova era de efervescência cultural iluminista, que nunca vivemos, pois nosso esquerdismo tem sido a doença senil do barroquismo, e resistido como imaginário social o mais longevo a nos dominar a mente.
Nenhum de nossos maiores ficcionistas, profetas, sábios ou prestidigitadores, poderia imaginar esta verdadeira reviravolta dada por nossa cultura política nos últimos anos. Chamaria mesmo de radical torção, um verdadeiro cavalo de pau de nosso legado contorcionista.
Mesmo os grandes intérpretes do Brasil – e aqui enumero todos que inventariei em meu novo livro –, como José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Capistrano de Abreu, Euclydes da Cunha, Paulo Prado, Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Viana Moog, Caio Prado Junior, Guimarães Rosa, Meira Penna, Roberto Campos, Darcy Ribeiro, Raimundo Faoro, Roberto DaMatta, José Murilo de Carvalho, Affonso Romano de Sant’Anna e outros, denunciaram causas e fenômenos singulares de nossas raízes culturais, como o patrimonialismo e o corporativismo, o familismo e o cunhadismo, o coronelismo e o patriarcalismo, o fisiologismo e o bacharelismo.
Mas nenhum culminou no fenômeno mais abrangente, e causa última a meu ver, de todo o complexo cultural brasileiro como o barroquismo, do qual esses outros lhe seriam meros caudatários ou mesmo de incidência setorial nos âmbitos da vida social, familiar, artística, econômica, política ou moral, com suas características mais gerais de gosto pela retórica da farsa, do paradoxal, da ironia, alegoria, paródia e hipérbole.
Aliás, neste meu novo livro, faço um vasto inventário de nossos costumes barroquistas, em todos os campos da expressão cultural nacional para além das artes e das letras barrocas, e que podem ser simbolizados pelas figuras centrais das volutas e espirais barrocas, sobretudo como figuras de representação retórica do paradoxo, da farsa, da ironia e da hipérbole.
A começar pelo “rolo”, de onde deriva “enrolar”, como dobrar algo em torno de sua própria matéria, demonstro que a farsa, como mentira, é um dos vocábulos de maior sinonímia da língua portuguesa falada no Brasil, chegando a quase uma centena de ocorrências.
PublicidadeCito apenas as mais folclóricas para o leitor checar seu próprio conhecimento: burla, farsa, mentira, caô, rolo, enrolação, broma, trapaça, fraude, falcatrua, fajuto, golpe, mutreta, treta, engodo, embuste, patifaria, ardil, cilada, troça, tribofe, bilontra, brinca, manobra, tapeação, tramoia, lorota, enredo, ludibrio, embromação, trama, aldrabice, dolo, deboche, galhofa, bufonaria, balela, fábula, lenda, conto, peta, patranha, pulha, moca, lesa, peraltice, potoca, maranha, embrulho.
Todavia, a mais significativa de todas é “logro” (do latim lucru) que sustenta a ambivalência moral de nosso próprio caráter entre lucrar e lograr, lucro e logro.
Por outro lado, quantas cornucópias, quantas espirais e volutas, habitam em nossas mentes depois de cinco séculos de barroquismo legado de nossas artes e letras para nosso imaginário social, nosso inconsciente coletivo e mesmo nossa identidade cultural?
Não foi à toa que, entre figuras como anomitas, chifre de cabra, shoffar, trompa, cabos de violinos, caracóis, caramujos, tranças indígenas, gavinhas florais, labirintos, torres de Babel, capitéis de colunas jônicas, baldaquino e escadarias do Vaticano, propostas como capa de meu novo livro, preferi esta figura insólita de uma caveira humana com o cérebro retorcido em forma de espiral. Redobradas e desdobradas formas de se ir para a direita pelo sentido da esquerda e para a esquerda pelo sentido da direita.
Somos assim mesmo, o estilo da arte barroca do século XVI, sem a mediação e temperança da boa forma e da justa medida da Renascença que lhe antecedeu, nem tampouco da prudência e do equilíbrio da cultura iluminista que lhe sucedeu, desde o século XVII e XVIII, transbordou para todo o complexo cultural brasileiro – nossa chamada mentalidade barroquista, nosso apego à uma visão de mundo moldada em torções, contorções e distorções da realidade. Enfim, nosso espírito hiperbólico, irônico, alegórico, paradoxal, parabólico, farsesco e burlesco, com que vemos, nos inserimos e tratamos tudo em nossa volta. E reviravolta.
Meio a nosso barroquismo moral pleno de relativismo, os recursismos de nosso Judiciário plenos de atenuantes e agravantes e a burla e a farsa de nossa política que quer a todos enganar por todo o tempo, eis que um capitão imbuído dos valores da ordem, da disciplina e hierarquia aprendidos no Exército se empenha em levar ao cenário central de nosso barroquismo político, o Congresso Nacional, o bom senso e a clareza do senso comum, tal qual a fábula O rei está nu, de Hans Christian Andersen.
Só não ouviram os que não quiseram ouvir a voz do capitão que representava a indignação de milhões de cidadãos desde as megamanifestações de 2013 em repúdio aos desmantelos e esbulhos de nossa classe política.
A partir daí, tem sido definitivo o exercício de outro valor muito caro aos militares: a humildade de reconhecer seus próprios limites e se cercar dos melhores de cada área em que terá de atuar. Assim, o capitão está a convocar os melhores generais para a Defesa, a Infraestrutura e a Segurança Institucional, um dos melhores pesquisadores para a Ciência e Tecnologia, um dos melhores economistas para a Economia, um dos melhores diplomatas para a Chancelaria e um dos melhores magistrados para a Justiça.
E o que pode significar isso se não o esforço definitivo de passamento de nosso barroquista imaginário de salvadores da pátria, reencarnações sebastianistas de falsos profetas, líderes carismáticos de baba de quiabo de que sempre fomos vítimas? Se não a oportunidade histórica de passarmos para uma era iluminista de afirmação do bom senso e da justa medida, de desapego, enfim, pelo adjetivismo, ornamentalismo e as desmesuras da vã retórica?
Para além de um novo governo, o que vemos no Brasil é um grande embate entre duas grandes tradições culturais do Ocidente, o iluminismo e o barroquismo em que temos vivido imersos, todos esses séculos, por não conseguirmos reunir verdadeiras elites para empreender, enfim, a mudança do paradigma cultural da vã retórica populista para a ordem da razão no trato da coisa pública.
Em que pese o sono esplêndido, não podemos deixar escapar tamanha oportunidade de despertar o gigante.
* O artigo trata de tema explorado com mais profundidade pelo autor em seu novo livro, Destorcer o Brasil: de sua cultura de torções, contorções e distorções farroquistas (Editora Ibis Libris). O assunto também foi discutido em recente conferência promovida promovida pela Academia Brasileira de Letras.
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