Em menos de dois anos, o governo Lula conseguiu reverter tendências desastrosas da economia brasileira, não obstante as dificuldades no Congresso Nacional e a oposição implacável por parte de setores do mercado, bem posicionados no Banco Central. Entre os vários indicadores socioeconômicos virtuosos, inclui-se uma convincente estabilidade do processo inflacionário, pilar da estabilidade social e econômica e fundamento para as estratégias, em curso, de reconstrução e transformação do país. Mas há um sinal amarelo no cenário: a inflação dos alimentos é preocupante.
Basta observar que em outubro passado a taxa de inflação geral acumulada em 12 meses ultrapassou um pouco a meta, mas nada que reflita desajustes substantivos ou riscos macroeconômicos. Porém, em que pese a higidez da estabilidade geral dos preços, persistem no Brasil antigas tensões atípicas de preços nos alimentos, fenômeno que corrói a renda, notadamente, dos mais pobres. Além dos impactos materiais e no bom humor dos consumidores mais suscetíveis, obviamente a volatilidade dos preços dos alimentos mais essenciais provoca desgastes ao governo.
É revelador que, de janeiro de 2020 a outubro de 2024, a variação acumulada do IPCA geral tenha sido de 32,3%, enquanto a do IPCA da “alimentação no domicílio”, alcançou 52,6%, com o agravante de taxas ainda mais elevadas em produtos estratégicos da dieta básica. Por exemplo, a inflação acumulada do arroz, no período, foi de 114%. Com preços proibitivos dos produtos para uma alimentação saudável, as populações de menor renda, principalmente, passaram a recorrer cada vez mais aos ultraprocessados. Com tal pressão de demanda, esses produtos também passaram a ter os preços elevados em níveis importantes, como no caso clássico do miojo (macarrão instantâneo) cuja inflação de 2020 a outubro de 2024 foi de 62.2%.
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Em suma, em termos de inflação da comida o Brasil supera 130 países entre 171 pesquisados entre setembro/outubro deste ano, segundo dados da Trading Economics. Como isso é possível no segundo maior produtor de alimentos do mundo, mesmo em produtos sem ou com vínculo apenas residual com o mercado externo? A resposta não é simples: o atual ciclo exportador do agronegócio, iniciado na década de 1990, tem resultado na transferência massiva de áreas com arroz, feijão e mandioca, por exemplo, para produtos destinados à exportação.
Segundo as projeções de 2023 do Ministério da Agricultura e Pecuária, mantida a tendência atual as áreas de arroz e feijão sofrerão redução de 1 milhão de hectares, cada uma delas, do ano passado até 2032. Enfim, o mercado doméstico não consegue competir com o mercado externo por conta da combinação câmbio, preços internacionais e os incentivos da Lei Kandir aos exportados.
Entre os fatores que impactam a formação dos preços dos alimentos, temos também os sinistros de produção cada vez mais frequentes e intensos com o agravamento da crise climática. Também é relevante assinalar os efeitos nos preços da qualidade da concepção e da gestão das políticas públicas, afora práticas especulativas que ocorrem em situações de escassez.
Em resumo, temos problemas circunstanciais e estruturais afetando a oferta e, por conseguinte, os preços dos alimentos no Brasil, resultando numa ameaça às estratégias de fortalecimento da renda da população pelos seus impactos na demanda alimentar.
Atento a esse quadro herdado, o governo Lula, com mais ênfase neste ano, adotou uma série de medidas, ainda insuficientes, para revigorar a base produtora de alimentos essenciais por meio da agricultura familiar, incluindo alguns dos seus extratos pouco atendidos pela política agrícola. O Plano Safra definiu estímulos nos juros, preços, prazos, retomada da política de estoques e estímulos adicionais para alimentos mais sensíveis da nossa dieta, e para os agroecológicos.
Porém, penso que a resolução duradoura dessa ameaça à nossa segurança alimentar requer, sobretudo, políticas em algumas direções, como:
- a garantia de paridade competitiva entre produtos para exportação e o mercado doméstico;
- garantia do acesso efetivo às políticas setoriais pela maior parte do universo da agricultura familiar, ainda excluída até do Pronaf (na região Norte, somente 5% dos estabelecimentos familiares têm acesso ao crédito);
- desconcentração regional da produção de alimentos oportunizando a diversidade de calendários agrícolas pelas regiões do país; e
- a superação do impasse ainda presente entre os formuladores da política agrícolas, remanescente das ideias neoliberais, que julgam anacrônica a formação e manutenção de estoques públicos mesmo com os riscos exponenciais ao abastecimento alimentar em decorrência da crise climática. O governo precisa ter cuidado com as orientações desses especialistas neoliberais.
Diante das ameaças já severas à oferta alimentar derivadas dos efeitos das mudanças climáticas, sugeriria a reconstituição da Lei Delegada nº 4, revogada pela chamada Lei da Liberdade Econômica do governo militarista Bolsonaro. A lei, de 1962, assinada durante o governo João Goulart, tratava da intervenção no domínio econômico para garantir a livre distribuição de produtos de consumo.
A despeito de medidas estruturantes em curso, é preciso enfrentar as chamadas forças do mercado que manipulam os preços dos alimentos. É uma tarefa urgente reduzirmos o custo dos alimentos, bem como conter a alta dos combustíveis e da energia elétrica. No caso dos alimentos, temos ferramentas estratégicas, como dois ministérios e os bancos públicos, as quais já deveriam ter sido acionadas para reduzir ao menos os preços do arroz, feijão, frutas e verduras.
Entendo que os produtores que se disponham a produzir estes alimentos básicos precisam receber incentivos maiores e condições de créditos bem diferenciadas, como também na renegociação de dívidas e regularização de terras.
O segundo maior produtor de alimentos do mundo precisa de uma forte base produtora de alimentos para o mercado doméstico para dar suporte à segurança alimentar da nossa população, sob pena de ameaça às estratégias de recuperação e transformação do Brasil.
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