A notícia, na seara nacional, mais relevante do dia 20 de abril de 2022 foi a condenação penal do deputado federal Daniel Silveira. “O Supremo Tribunal Federal (STF) condenou nesta quarta-feira (20/4) o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) pelos crimes de tentativa de impedir o livre exercício dos poderes e coação em processo judicial. Ele foi condenado a oito anos e nove meses de reclusão, inicialmente, em regime fechado, à perda do mandato de deputado federal à suspensão dos seus direitos políticos. Ao todo, 10 dos 11 ministros votaram pela condenação do parlamentar”, escreveu a BBC.
A histórica decisão do STF afirma (e reafirma) algumas premissas importantes. Eis algumas delas: a) não existe direito absoluto (ou de exercício ilimitado); b) o direito de manifestação de pensamento não é absoluto ou ilimitado; c) a imunidade parlamentar não se constitui num “escudo” intransponível para proteger qualquer ato ou manifestação verbal; d) não é válida a manifestação de expressão para atacar a democracia (justamente o regime que garante a liberdade de manifestação) e e) não é válida a utilização da imunidade parlamentar para investir gravemente contra o funcionamento regular das instituições democráticas.
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Pouparei o leitor destas modestas linhas de exemplos das tristes falas do aludido parlamentar, notadamente numa considerável série de vídeos veiculados em redes sociais na internet. Trata-se, basta dizer, e quem quiser pode conferir, de uma coleção inacreditável de insultos, ameaças, incitações ao cometimento de crimes, provocações, xingamentos e baixezas. Em suma, um organizado e sistemático discurso de ódio que atentou criminosamente contra o Estado Democrático de Direito com o objetivo, no limite, de suprimir o regime democrático.
No dia seguinte, 21 de abril de 2022, a notícia mais importante recaiu no decreto presidencial que concedeu “… graça constitucional a Daniel Lucio da Silveira, deputado federal, condenado pelo Supremo Tribunal Federal, em 20 de abril de 2022, no âmbito da Ação Penal n. 1.044, à pena de oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado”.
O inusitado decreto do senhor Messias Bolsonaro ensejará um forte debate jurídico em torno de várias questões, especialmente em relação aos limites do poder do presidente da República para adotar a graça (ou indulto individual). O “favor” pode ser concedido antes do trânsito em julgado da decisão condenatória? É admissível para além de razões humanitárias? Ofende a impessoalidade quando dirigido inequivocamente a beneficiar aliado político? Ofende a moralidade, como padrão constitucional imposto aos negócios públicos? Não teria afrontado expressamente uma decisão judicial, em função de ter considerado que o parlamentar “somente fez uso de sua liberdade de expressão” (fundamento afastado pelo STF)?
Destaco, a meu ver, as principais questões jurídicas a serem discutidas. Tratam-se: a) da motivação inidônea e b) da presença de desvio de finalidade. Com efeito, invocou-se como razão para edição do indulto individual “que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar”. À toda evidência, inexiste essa situação fática forte e bem definida. Críticas e irresignações de certos setores políticos, em relação à decisão do STF, não chegam nem perto de um quadro de comoção social. Por outro lado, a finalidade do ato não é aquela para a qual o instituto da graça foi inserido na ordem jurídica. Buscou o (des)governante, em linha com suas condutas pretéritas, confrontar o Supremo Tribunal Federal. Esse é, ao fim e ao cabo, a pretensão belicosa do senhor Messias.
Cumpre destacar que a inexistência dos motivos e o desvio de finalidade, devidamente flagrados, são vícios que tornam imprestável um ato jurídico. Essa afirmação pode ser confirmada a partir da redação do artigo segundo, parágrafo único, alíneas “d” e “e” da Lei da Ação Popular (Lei n. 4.717, de 1965). Também deve ser lembrado que o STF afastou nomeações por desvio de finalidade (ex-presidente Lula para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República e Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal).
Subsiste, ainda, um acalorado debate político acerca do ato adotado pelo senhor Bolsonaro. Afinal, estamos diante de uma (mais uma) ação substancialmente política de afronta ao STF. O conhecido modus operandi do presidente da República envolve um permanente teste dos limites das instituições democráticas. Busca-se, de forma incessante, uma trinca, um espaço, uma fragilidade, para fincar a cunha autoritária e perseguir, numa pressão contínua, a erosão do regime democrático e da prevalência das liberdades e dos direitos humanos.
Portanto, tudo indica que juridicamente não existe graça (válida) no ato do presidente da República. E politicamente também não tem a menor graça desdenhar da democracia, de seus institutos e de suas instituições.
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