No dia 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco – mulher, negra, LGBTQI+ – foi assassinada a tiros junto com seu motorista, Anderson Pedro Mathias, quando saía de uma reunião no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro. Não há ninguém evidência de envolvimento direto de pessoas do governo Jair Bolsonaro no crime, e seria leviandade fazer qualquer ilação nesse sentido. Mas um dos aliados mais próximos de Bolsonaro, Daniel Silveira, posou dias para uma foto onde quebrava uma placa de rua feita em homenagem à vereadora assassinada. Em outubro daquele ano, Bolsonaro foi eleito presidente da República e Daniel Silveira deputado federal pelo PTB do Rio de Janeiro.
O episódio acaba sendo um resumo das ameaças aos direitos humanos ocorridas na era Jair Bolsonaro. Na avaliação feita no grupo de trabalho da equipe de transição para o governo Luiz Inácio Lula da Silva, contida no relatório final entregue na quinta-feira (22), há um diagnóstico de desmonte das políticas relacionadas com os direitos humanos, diante do revisionismo do grupo que deixará o governo nos próximos dias.
“No período de 2019 a 2022, o revisionismo do significado histórico e civilizatório dos direitos humanos, a restrição à participação social e a baixa execução orçamentária foram a tônica da gestão da política de direitos humanos”, resume o relatório da transição
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Modo Damares
O modelo de Bolsonaro para a sua condução na área dos direitos humanos ficou concentrado na pasta comandada na maior parte do tempo pela agora senadora eleita pelo Distrito Federal Damares Alves (Republicanos). Todas as áreas relacionadas ao tema e a minorias uniram-se no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) que, segundo a visão da equipe de transição, “pautou a sua atuação na negligência de populações vulnerabilizadas, na negação da existência de graves violações a direitos, e no desmonte de políticas públicas arduamente conquistadas, até 2015”.
“O MMFDH foi instrumentalizado para o cumprimento da tarefa de subverter o significado histórico dos direitos humanos, por meio do uso deturpado de estruturas e recursos públicos; da celebração de parcerias com entidades estranhas à agenda do Ministério; e do comprometimento de áreas já consolidadas de enfrentamento a violações de direitos humanos”, descreve o relatório.
Um dos exemplos desse desmonte, segundo o relatório foi o uso do Disque 100, ferramenta para denúncias de violação de direitos humanos. De acordo com o grupo da transição, o Disque 100 passou a ser utilizado para constranger escolas e estabelecimentos comerciais que exigiam certificado de vacina contra a covid-19. A ferramenta passou a atender, como se fosse violação de direitos humanos, denúncias de pessoas identificadas “com a chamada ‘escola sem partido’ e o negacionismo da crise sanitária recente”. A partir da denúncia, as escolas e as lojas sofriam constrangimentos. “Toda a rede de proteção, antes acionada para dar resposta a denúncias de violações, foi desarticulada. Os dados do Disque 100, que são fonte de informações para o desenvolvimento de políticas públicas, deixaram de ser divulgados”, diz o texto.
Desarticulação social
Outro caminho apontado no relatório foi a desarticulação da participação social dentro do governo.” Na pasta dos direitos humanos, foram desarticulados ao menos 14 colegiados com participação social efetiva, sendo 12 alterados, com o objetivo de precarizar ou desconfigurar a participação da sociedade, e dois simplesmente extintos por revogação normativa sumária”, descreve o relatório.
A redução do orçamento para o setor é outro ponto destacado no relatório. Em 2022, o valor previsto, de R$ 238 milhões, era um terço do que foi utilizado em 2015. “Além dos cortes, houve baixa execução orçamentária”, aponta o texto. “Até o início de dezembro de 2022, apenas 40% do orçamento da área havia sido empenhado e cerca de 21% haviam sido executados. O cenário orçamentário-financeiro da pasta indica a inviabilidade da política de direitos humanos, caso não haja recomposição orçamentária a partir de 2023”.
Mulheres
O relatório detalha, então, o desmonte produzido na atenção às minorias. “A dimensão do desmonte provocado pelo governo Bolsonaro nas políticas para as mulheres é a expressão de um projeto político de invisibilização e sujeição da mulher”, observa o texto.
“No primeiro semestre de 2022, o Brasil bateu recorde de feminicídios, registrando cerca de 700 casos no período. Em 2021, mais de 66 mil mulheres foram vítimas de estupro; mais de 230 mil brasileiras sofreram agressões físicas por violência doméstica. Os dados são do mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Embora todas as mulheres estejam expostas a essas violências, fica evidente o racismo: as mulheres negras são 67% das vítimas de feminicídios e 89% das vítimas de violência sexual”, descreve o relatório.
“Essas tragédias ocorrem no mesmo compasso do desmonte das políticas de enfrentamento à violência contra a mulher”, continua. Segundo o relatório, os principais eixos que garantiam a capacidade de execução do programa “Mulher Viver Sem Violência” foram retirados da legislação, desobrigando o Estado de cumpri-los. O orçamento do programa foi desidratado em 90% e foram paralisadas as construções das Casas da Mulher Brasileira.
O orçamento do Disque 180, destinado a denúncias de violência contra a mulher, foi reduzido em 2023 para apenas R$ 6 milhões, o que pode inviabilizar o seu funcionamento.
Igualdade racial
O governo Bolsonaro chegou a conseguir a proeza de encontrar um negro racista, Sergio Camargo, para ocupar a Fundação Palmares. O orçamento destinado ao enfrentamento da questão racial foi reduzido em 93% desde 2015. “Entre os principais cortes, destacam- -se a redução no programa de regularização fundiária de territórios quilombolas pelo INCRA [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], o estrangulamento das ações finalísticas da Fundação Cultural Palmares e as previsões irrisórias para a implantação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial – SINAPIR”.
Em um balanço geral acerca do percurso dos programas e ações em curso nos últimos anos, avalia-se que dos 18 programas/ações que compunham o repertório prioritário da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) , em 2015, “seis foram descontinuados, cinco desmantelados, seis enfraquecidos e um deles não passou por qualquer aprimoramento”.
Povos indígenas
“Os direitos indígenas nunca foram tão ultrajados e ignorados na história recente do Brasil como no governo Bolsonaro”, aponta o relatório. “Os cortes orçamentários; o desmonte das estruturas administrativas; a completa paralisação dos processos demarcatórios, somados ao aumento das invasões de terras e territórios indígenas; além da ausência de ações de prevenção e enfrentamento durante a crise sanitária da COVID-19, representam um desmonte sem precedentes na política indigenista brasileira”.
Em linha de gravidade semelhante como retrato da violação dos direitos humanos houve o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, na região do Vale do Itajaí, na Amazõnia. “A invasão das terras e territórios indígenas se acentuou exponencialmente nesse período, em razão de políticas de incentivo à grilagem e à exploração ilícita e indevida de recursos naturais por garimpeiros, madeireiros, pecuaristas, pescadores, caçadores ilegais e narcotraficantes. Isso produziu um aumento expressivo de conflitos e violências contra os povos indígenas”, diz o texto.
O território onde vivem os Yonomami, em Roraima, é o retrato desse flagelo. “Configura-se, ali, uma situação de emergência humanitária, com violências sistemáticas, mortes de crianças e mulheres, destruição ambiental e adoecimento. O garimpo ilegal avançou 46% nessa região, em 2021”, aponta o relatório.
“Ao paralisar completamente as demarcações, o governo Bolsonaro agravou o contexto de insegurança e as violações de cerca de 40% da população indígena, que vive em pouco mais de 1% do total da superfície demarcada atualmente no Brasil”, denuncia o texto.