Uma pessoa isolada socialmente, sem contato com infectados pela covid-19, sem comorbidades, que sente apenas uma leve dor de cabeça – talvez fruto de uma ressaca – ainda assim pode receber, de um formulário virtual produzido pelo Ministério da Saúde, um receituário ineficaz contra a doença: cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, doxicicilina, sulfato de zinco e Dexametasona já saem prescritos e prontos para que médicos os entreguem a seus pacientes.
A forma de funcionamento do formulário virtual TrateCOV – que serve para facilitar o diagnóstico de covid-19 mas, na verdade, receita o coquetel do suposto “tratamento precoce” para quase qualquer caso – foi descoberta por programadores, que analisaram como o formulário funciona.
O funcionamento da plataforma, destinado em um primeiro momento a médicos de Manaus, corrobora a ação do presidente Jair Bolsonaro, do ministro da Saúde Eduardo Pazuello e de parlamentares da base bolsonarista, que insistem no uso do coquetel.
Segundo programadores ouvidos pela reportagem, o sistema atribui uma série de notas a sintomas que o paciente pode desenvolver e, com base no escore final, apontar o tratamento – que será composto apenas do mesmo conjunto de seis remédios (cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, doxicilina e sulfato de zinco), com a opção de incluir Dexametasona. Acima de seis pontos, a única variação é quanto ao tamanho da dosagem, variando pelo peso do paciente.
O desenho do sistema, portanto, poderia gerar anomalias. Uma dor de cabeça seguida de náuseas por uma viagem de barco já geraria os seis pontos necessários para emissão de um receituário. Se o peso da pessoa for alterado para hipotéticos 5.000 Kg e sua altura para 300 cm, a receita passa a ordenar o consumo de 333 comprimidos de Ivermectina por dia.
No início da pandemia, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que entre outras atividades produz a vacina de Oxford no Brasil, já havia recomendado que não houvesse o tratamento de covid-19 com doses altas de cloroquina – o que pode estar se repetindo agora. “Os resultados apresentados servem como um alerta, oferecendo evidências mais robustas para protocolos de tratamento da covid-19”, explicou à época o pesquisador Marcus Vinícius Lacerda.
PublicidadeJá em abril de 2020, a Fiocruz alertava que nenhum estudo havia até então garantido a segurança do uso. Mesmo hoje, em janeiro de 2021, não há nenhuma garantia de que o uso de cloroquina e dos outros remédios receitados pelo Ministério da Saúde trouxessem resultado.
Questionado, o Ministério da Saúde disse apenas que “orienta opções terapêuticas disponíveis na literatura científica atualizada e oferece total autonomia para que o profissional médico decida o melhor tratamento para o paciente, de acordo com cada caso”, ignorando o fato de que não há literatura científica que endosse o uso do coquetel.
O TrateCOV é uma ferramenta criada para auxiliar médicos na coleta de sintomas e sinais de pacientes e que está em fase de testes em Manaus, afetada por uma segunda onda de covid-19 nas últimas semanas e alvo de uma campanha presencial do ministro Pazuello pelo uso dos remédios ineficazes. “A expectativa é disponibilizar o sistema para todo o país de forma gradual”, disse o Ministério.
A Associação Médica Brasileira informou que reitera à sociedade e aos médicos do país que as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no “tratamento precoce” para a covid-19.
“Atualmente, aliás, as principais sociedades médicas e organismos internacionais de saúde pública não recomendam o tratamento preventivo ou precoce com medicamentos, incluindo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), entidade reguladora vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil. Só as vacinas têm o potencial de combater a covid-19 grave, evitando internações hospitalares, necessidade de oxigenioterapia, admissões em unidades de terapia intensiva e óbito”, diz a nota enviada pela entidade.
Pouco depois do meio-dia, o formulário estava fora do ar. Ele ainda pode ser acessado em uma página própria do Ministério da Saúde, por meio de aba anônima do navegador.
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