Adovaldo Medeiros Filho*
Leandro Grass**
Roberta Rios***
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes deferiu, parcialmente, na noite do último dia 8, medida cautelar requerida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no bojo da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 672, proposta pela OAB, para:
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“Reconhecendo e assegurando o exercício da competência concorrente dos governos estaduais e distrital e suplementar dos governos municipais, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras; independentemente de superveniência de ato federal em sentido contrário, sem prejuízo da competência geral da união para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário.”
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Com efeito, a OAB alegou, em seu pedido, que o presidente da República estaria agindo em descompasso com as diretrizes recomendadas pelas autoridades sanitárias do Mundo todo, inclusive do Ministério da Saúde local, ao passo que Governo Federal teria praticado “ações irresponsáveis e contrárias aos protocolos de saúde aprovados pela comunidade científica e aplicados pelos chefes de Estado em todo Mundo”. Por fim, afirma que o presidente da República, em especial, tornou-se um “agente agravador da crise”.
Destaque-se, preliminarmente, que é inegável o cenário de crise vivenciado no Brasil. Estamos diante de um cenário nunca presenciado, o que tem ensejando a prática de diversas medidas, por parte de estados e municípios, para aplacar a disseminação da doença.
Sucede que, consoante se verifica diariamente nos veículos de comunicação de âmbito nacional, o presidente da República, líder máximo de nossa nação, busca o embate com governadores e prefeitos, sobretudo quanto à forma de isolamento dos cidadãos, com o argumento de que o Brasil não pode parar, eis que a paralisação das atividades poderia gerar um risco econômico grave.
Dessa forma, o presidente não somente incentiva o retorno da população às suas atividades econômicas como ameaça, diariamente, editar decretos para liberar toda e qualquer forma de trabalho, de forma diametralmente oposta ao que diz as autoridades de saúde e às medidas tomadas por governadores e prefeitos.
E aí é que vem a pergunta: como isso se relaciona com o federalismo e com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Federal (STF)?
Na verdade, a decisão proferida se vale da interpretação das competências conferidas aos entes federativos pela própria Constituição Federal, especialmente aquelas definidas nos artigos 22 a 24 e pelo artigo 30, todos de nossa Carta Magna.
Vale dizer que o federalismo adotado pela Constituição de 1988, estruturado por meio do sistema constitucional de repartição de poderes, segue o modelo cooperativo. Tal modelo, segundo as lições de José Afonso da Silva, estrutura “um sistema que combina competências exclusivas, privativas e principiológicas com competências comuns e concorrentes, buscando reconstruir o sistema federativo segundo critérios de equilíbrio ditados pela experiência histórica”.
É relevante destacar que esse sistema constitucional de repartição de competências é complexo, pois alicerçado em lógicas tanto horizontal quanto vertical, e convoca todos os entes federativos “a atuarem legislativa e administrativamente nas matérias mais diversas da vida social, política e econômica”.
Nesse mesmo sentido, cumpre destacar que o Constituinte de 1988, portanto, buscou resgatar o déficit de autonomia dos Estados-membros, instituindo, na norma fundamental, hipótese de repartição vertical de competência legislativa, em um movimento de descentralização. Importante, nesse particular, a lição de Raul Machado Horta:
“É nesse federalismo de equilíbrio que se inspirou o constituinte federal brasileiro, para levar a bom termo a restauração do federalismo brasileiro, de forma que o indispensável exercício dos poderes federais não venha inibir o florescimento dos poderes estaduais. (…)”
A reformulação da repartição de competências reclama uma descentralização da competência legislativa, que se concentrou exageradamente na União Federal. Tecnicamente, essa descentralização se realizaria no sentido de ampliar as matérias da legislação à União e aos Estados-membros, deferindo-se à União a legislação de normas gerais e aos Estados a legislação complementar, no campo das normas gerais.
O deslocamento de matérias de competência exclusiva da União para o da legislação comum, a ser objeto de dupla atividade legislativa, a da União no domínio da legislação de normas gerais e a do Estado na complementação da legislação federal representa um esforço quantitativo e qualitativo da competência estadual para legislar. Cada Estado-membro afeiçoa às necessidades de seu ordenamento a legislação federal de normas gerais, desde que essa legislação não se torne exaustiva e integral. É da natureza da legislação de normas gerais a não exaustividade de seus preceitos, de forma a permitir o seu preenchimento na via da legislação complementar estadual. (Destaques atuais)
Veja-se, pois, que a própria dicção do texto constitucional determina um federalismo de cooperação, ou seja, descabe à União ou a qualquer dos entes federativos aplacar, de forma sumária, às competências de cada um deles. Tanto o é que os artigos 23 e 24 da Constituição trazem as competências concorrentes e suplementares de cada ente federativo. Além disso, o artigo 30 trata das matérias locais, de interesse dos municípios.
Se assim não fosse, somente a União deteria competência para legislar e editar atos normativos sobre todos os assuntos. Ao contrário, o federalismo cooperativo, como previsão constitucional, à luz do disposto nos artigos 22 e seguintes do texto constitucional, deve permitir aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal que de fato exerçam a sua competência, legando à União a edição de normas gerais, permitindo-se aos Estados que funcionem, nas palavras do Excelentíssimo Ministro Edson Fachin, como:
“verdadeiros laboratórios legislativos, ou seja, como espacialidades em que se possibilita a procura de novas ideias sociais, políticas e econômicas, sempre na busca de soluções mais adequadas para os seus problemas peculiares e, eventualmente, tais resoluções serem passíveis de incorporação mais tarde por outros estados ou até mesmo pela União em caso de êxito.”
E isso não se restringe à produção legislativa. Dentro de sua competência, é permitido às autoridades locais editar atos que não ingressem na competência dos demais entes legislativos.
Em síntese: a premissa basilar do federalismo brasileiro está na repartição de competências, que compreende, por sua vez, a compatibilização de interesses para reforçar o federalismo em uma dimensão realmente cooperativa. Essa premissa afasta a centralização no ente federal – União, para que o funcionamento harmônico das competências legislativas e executivas otimizem os fundamentos (art. 1º) e objetivos (art. 3º) da Constituição Federal.
Em matéria de saúde pública, como é o caso, cumpre destacar que o que dispõe os artigos 24, XII, 30, I, II e VII, de nossa Carta Magna:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(…)
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde;
Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
(…)
VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
Veja-se que foi o próprio constituinte que definiu o federalismo cooperativo. Cooperação é algo completamente diverso da centralização. Sendo assim, cabe a todo e qualquer ente federativo respeitar as competências dos demais.
Apenas a título de exemplo, em tema de saúde pública, o mesmo Supremo Tribunal Federal, ao analisar leis estaduais que tratavam da proibição do uso do amianto, fibra mineral extremamente prejudicial à saúde humana, entendeu pela constitucionalidade das leis do município de São Paulo que, a despeito de permissão do uso de determinado tipo de amianto em âmbito federal, proibia o uso local. Destaque, pois, para a ementa do julgado da ADPF 109, da relatoria do Ministro Edson Fachin:
Ementa: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Direito constitucional. Lei 13.113/2001 e decreto 41.788/2002, que dispõe sobre a proibição do uso de materiais, elementos construtivos e equipamentos da construção civil constituídos de amianto no município de São Paulo. Exercício legítimo da competência dos municípios para suplementarem a legislação federal. Arguição julgada improcedente. 1. Ante a declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 9.055/95, não invade a competência da União prevista nos arts. 24, V, VI e XII, da Constituição da República, a legislação municipal que, suplementando a lei federal, impõe regra restritiva de comercialização do amianto. 2. Trata-se de competência concorrente atribuída à União, aos estados e Distrito Federal para legislar sobre produção, consumo, proteção do meio ambiente e proteção e defesa da saúde, tendo os municípios competência para suplementar a legislação federal e estadual no que couber. 3. Espaço constitucional deferido ao sentido do federalismo cooperativo inaugurado pela Constituição Federal de 1988. É possível que Estados-membros, Distrito Federal e municípios, no exercício da competência que lhes são próprias, legislem com o fito de expungirem vácuos normativos para atender a interesses que lhe são peculiares, haja vista que à União cabe editar apenas normas gerais na espécie. 4. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental julgada improcedente, com a declaração incidental da inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 9.055/95. (ADPF 109, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 30/11/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 31-01-2019 PUBLIC 01-02-2019)
A situação atual guarda semelhança com o julgado acima. Com efeito, descabe à União centralizar as decisões ou confrontar as determinações feitas por governadores e prefeitos, sobretudo pelo fato que estes têm atuado nos estritos limites de sua competência constitucionais. Com efeito, o ente federativo pode, quando assim entender, ser mais restritivo que o órgão central, sobretudo porque é a Carta Magna que lhe dá o substrato para assim agir.
Assim, o federalismo, enquanto forma de organização do Estado brasileiro, deu autonomia e competências para cada um dos entes federados. Assim, a regra não é a submissão, como deseja o Presidente, e sim a repartição das competências e o respeito às decisões de cada uma das unidades que compõem a República Federativa do Brasil.
Nesse aspecto, cumpre destacar esclarecedor trecho da decisão do Ministro Alexandre de Moraes:
Em relação à saúde e assistência pública, inclusive no tocante à organização do abastecimento alimentar, a Constituição Federal consagra, nos termos dos incisos II e IX, do artigo 23, a existência de competência administrativa comum entre União, estados, Distrito Federal e municípios. Igualmente, nos termos do artigo 24, XII, o texto constitucional prevê competência concorrente entre União e estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde; permitindo, ainda, aos municípios, nos termos do artigo 30, inciso II, a possibilidade de suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local; devendo, ainda, ser considerada a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (art. 198, CF, e art. 7º da Lei 8.080/1990), com a consequente descentralização da execução de serviços e distribuição dos encargos financeiros entre os entes federativos, inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 6º, I, da Lei 8.080/1990).
(…)
Dessa maneira, não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) e vários estudos técnicos científicos, como por exemplo, os estudos realizados pelo Imperial College of London, a partir de modelos matemáticos (The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and Suppression, vários autores; Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID19 mortality and healthcare demand, vários autores).
Assim, a decisão proferida pela Suprema Corte, que ainda deve ser apreciada pelo Plenário, buscou tão somente privilegiar o disposto na Constituição Federal, com o efetivo respeito às competências dos entes federativos, especialmente para permitir que tais entes adotem medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas.
A referida decisão, consoante alguns apressam-se em dizer, não representa transferência das responsabilidades do presidente para governadores e prefeitos para a prática dos atos acima mencionados e nem os tornam atores exclusivos do processo. Ao contrário, apenas reforça o que pretendeu o constituinte, no sentido que todos exerçam as suas competências nos seus exatos limites, inclusive o presidente da República, de acordo com o que a Constituição assim lhe permite.
Dessa forma, a decisão judicial nos exorta a pensar em um agir conectado, com a efetiva interlocução entre todos os Poderes, seja em âmbito federal, estadual ou municipal. Respeitar os atos de cada um é a melhor forma de colaborar para que os objetivos da República FEDERATIVA do Brasil sejam alcançados, bem como para que a saúde de cada cidadão seja preservada.
*Adovaldo Medeiros Filho bacharel em Direito pela UnB; Especialista em Direito Administrativo pelo Isntituto Brasiliense de Direito Público; advogado e assessor Parlamentar do Deputado Distrital Leandro Grass
**Leandro Grass é deputado distrital pela Rede Sustentabilidade; professor e pesquisador nas áreas de Sociologia, Políticas Públicas, Cultura e Educação; mestre em Desenvolvimento Sustentável e doutorando em Gestão Pública.
***Roberta Rios é graduada em Ciência Política pela Unb. Atuou como assessora parlamentar no governo federal por 10 anos. coordenadora de mandato do Deputado Distrital Leandro Grass.
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