Em Brasília, em meio aos desfiles de comemoração do bicentenário da independência do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro cometeu um ato inédito na história da República. Em um palco montado sobre um carro de som na Esplanada dos Ministérios, o chefe de Estado subiu ao palanque para explicitamente promover suas pautas eleitorais e implicitamente atacar seus rivais.
Para os demais partidos que concorrem à eleição, ao utilizar o desfile de Sete de Setembro como ferramenta para impulsionar seus comícios, Bolsonaro teria feito uso da máquina pública para se promover nas eleições. As executivas do PT, PV, PSB, Rede e até do União Brasil acionaram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por conta disso, em ações que ainda contam com o apoio do MDB. Os partidos integram as campanhas eleitorais de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Soraya Thronicke (União) e Simone Tebet (MDB).
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Especialistas consultados pelo Congresso em Foco concordam que os partidos não estão errados na avaliação. Para reforçar essa impressão, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do presidente, chegou a se referir às multidões de apoiadores do presidente que se reuniram em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo para ver os desfiles como “as maiores manifestações da história do Brasil numa eleição” em suas redes sociais. Ou seja, Eduardo reforçou que se tratavam de fato de atos eleitorais.
“Banalização do ilícito”
De acordo com André Sathler, analista político e doutor em filosofia, “claramente houve um abuso da legislação eleitoral” ao transformar as celebrações cívicas em comícios. “Idealmente isso já deveria ser levado o quanto antes à Justiça eleitoral. Mas devemos lembrar que Bolsonaro já acumula mais de uma centena de pedidos de impeachment, é um governo onde há a banalização do ilícito. No fim, isso vira pouco perto de outros abusos do governo dele”, acrescentou.
O cientista político e assessor legislativo André Pereira César segue na mesma linha, que fica mais nítida levando em consideração o histórico dos governos anteriores. “Tradicionalmente, os presidentes reconheceram que há uma fronteira sobre até onde usar a máquina pública durante a reeleição. Bolsonaro hoje cruzou a fronteira. Sabendo que estamos perto demais das eleições para que se possa cogitar uma revogação da candidatura, ele se dá o direito de ultrapassar os limites estabelecidos”, declarou.
No Congresso Nacional, o deputado Fábio Trad (PSD-MS) também avalia que, em seus discursos, Bolsonaro deixou de lado sua função enquanto presidente da República. “O Sete de Setembro pedia um presidente para discursar de forma institucional. Eis que surgiu um candidato que fez um discurso para dentro da sua própria bolha”, disse.
PublicidadeO deputado General Peternelli (União-SP), vice-líder do União Brasil na Câmara, já não avalia desta forma. “Não vejo que isso possa trazer um problema com a Justiça eleitoral pelo seguinte: uma pessoa falar sobre as realizações e atividades desenvolvidas, em especial que coincidam com o programa de governo, é algo natural. É um discurso que se traduz no programa de governo”, apontou. O posicionamento do General Peternelli mostra como seu partido hoje se encontra dividido com relação ao apoio ao governo Bolsonaro.
Assim como em 2021, Bolsonaro se pronunciou contra o Supremo Tribunal Federal (STF), desta vez de forma mais moderada e implícita. Peternelli considera que tais falas também não devem trazer problemas judiciais ao presidente. “Não vejo como manifestar opinião ou um ponto de vista, desde que com adequação, possa trazer algum problema”, afirmou.
Entendimento jurídico
O especialista em Direito Eleitoral, Diogo Gradim, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), considera que o entendimento da justiça eleitoral sobre se houve ou não violação da lei vai depender de uma série de fatores que ainda terão de ser esclarecidos. “Entendo que a principal questão que poderia ser suscitada é uma conduta vedada de agente público em campanha pela utilização de bens e servidores públicos em benefício da candidatura. Para que seja caracterizado o ilícito, no entanto, seria necessário identificar uma finalidade eleitoral”, explicou.
Um detalhe importante levantado pelo jurista é sobre qual seria a lei que Bolsonaro violou. “Seria possível [por exemplo] debater um desvirtuamento de publicidade institucional através da transmissão de um discurso pela TV pública. O artigo 37, parágrafo primeiro da constituição prevê a vedação de que a publicidade institucional dos órgãos públicos seja utilizada para promover algum agente, o que também é previsto na lei eleitoral”, apontou.
Outro aspecto a ser analisado na justiça eleitoral é até onde Bolsonaro falava como presidente em um desfile estatal, e a partir de que ponto se pode considerar a manifestação como um ato separado. “Em Brasília, por exemplo, houve dois atos: um de apoiadores e um do Estado brasileiro. Acredito que, até como estratégia, as falas mais abertamente eleitorais foram feitas nos atos de apoiadores e não no estatal. A discussão é em que medida um beneficia o outro no contexto”.
Na linha, porém, do que considera André Cesar, Bolsonaro pode ter feito um cálculo temporal para correr de fato o risco. O momento de um eventual processo,é provavelmente tarde para afetar sua campanha. “Essas representações não serão julgadas antes das eleições e não irão impedir as votações no dia 2 de outubro. Não há tempo hábil para tirar um candidato, seja ele de que partido for, por causa dos prazos processuais. Se houver um segundo turno, e se o andamento for célere, pode ser que haja tempo”, avalia Henrique Neves, ex-ministro do TSE.
A ação levantada pelos partidos, porém, pode vir a impactar um futuro governo. “Se porventura Bolsonaro ganhar as eleições, a ação tem o condão de pedir sua cassação. Mas caso não se reeleja, a ação continuará correndo, com a possibilidade de torná-lo inelegível por oito anos a partir das eleições de 2022 “, acrescenta o ex-ministro.
Impacto eleitoral
Se houve o intuito de Jair Bolsonaro em melhorar seu desempenho eleitoral com suas falas nos desfiles, os especialistas consultados contam que o objetivo provavelmente não foi alcançado. Além de não conseguir agregar novos nichos ao seu eleitorado, os discursos correm o risco de terem atrapalhado as tentativas do presidente de alcançar outros grupos, em especial as mulheres, parcela da população que, mesmo havendo esforços por parte de sua campanha, permanece com elevados índices de rejeição ao presidente.
André Sathler ressalta que, em seu discurso, Bolsonaro fez uma série de declarações que podem se tornar ofensivas ao eleitorado feminino. “A comparação das primeiras-damas [Michelle Bolsonaro e Janja, esposa de Lula] e a tentativa de puxar o coro para que o chamassem de ‘imbrochável’ foram falas que soam como muito machistas, justo em um tema onde ele tem apanhado, um tema que tem tirado o voto dele”.
André Pereira César ainda acrescenta que essas declarações ganham peso diante dos confrontos recentes do presidente com o eleitorado feminino. “Esse é o grande nó dele, e é um problema antigo para ele. Quando ele ataca a jornalista Vera Magalhães, quando ataca a Amanda Klein da Jovem Pan, e no fim ainda ataca a Janja, ele acaba afastando mais e mais esse eleitorado”.