A violência política de gênero foi uma das marcas das eleições de 2022. Terminado o primeiro turno do pleito, o Ministério Público Federal (MPF) abriu 83 processos decorrentes de denúncias envolvendo violência psicológica, econômica ou física motivadas por questões de gênero nas eleições. Em meio às campanhas do Dia da Mulher, a cientista política Bruna Camilo, doutoranda na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), explica que esse problema só será resolvido a partir do momento em que o Brasil conseguir se livrar do radicalismo político.
Em sua pesquisa de doutorado, Bruna Camilo estuda comunidades virtuais misóginas em que conseguiu se infiltrar. Nos grupos em aplicativos de mensagens privadas, blogs e outros meios de comunicação adotados pelas comunidades que observou, um padrão político foi identificado: todas adotam ideologias radicais, mais frequentemente de extrema-direita.
Esses grupos, chamados masculinistas, defendem deliberadamente o combate às liberdades civis e políticas de mulheres, referidas por eles sempre de forma pejorativa. Em 2018, apoiaram em massa a candidatura de Jair Bolsonaro, na esperança de avançar nessa pauta. “Eles ficaram muito decepcionados com o governo Bolsonaro porque ele não conseguiu retirar os direitos das mulheres. Ainda assim, o apoiaram de novo em 2022, já que seu nome ainda era uma via possível para os masculinistas”, relatou.
A cientista política explica que o discurso de ódio ligado ao gênero já passou a fazer parte do processo de radicalização que se observou no Brasil, especialmente nos meses que sucederam a derrota eleitoral de Bolsonaro. “Quando a gente for falar sobre a extrema-direita, torna-se necessário falar sobre questões de gênero e sobre espaços de poder”, ressaltou.
Consequências práticas
Apesar do fenômeno ser mais visível em comunidades virtuais isoladas, Bruna Camilo explica que os efeitos práticos do discurso masculinista se projetam para outros campos, e acabam atingindo a própria atuação das mulheres na política. “Os discursos de ódio e a misoginia contra parlamentares acabam afetando toda a participação feminina nesse meio”, apontou.
Em 2022, grupos políticos radicais chegaram a lançar ameaças de morte contra mulheres com atuação política, em especial mulheres trans, como foi o caso das agora deputadas Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG). A pesquisadora relembrou esse fenômeno. “Isso acua uma mulher na política. Se ela não está munida de uma equipe e de um aparato jurídico para se proteger, pode acabar até desistindo de participar no parlamento para preservar sua integridade física”.
Esse exílio parlamentar em decorrência da misoginia chegou a se concretizar em 2021, quando a vereadora fluminense Benny Briolly (Psol), de Niterói, saiu do país para se proteger após receber ameaças de morte. “A radicalização do Brasil já está atrelada à violência política de gênero. Quando a mulher ocupa um espaço de poder, ela se torna um possível alvo desse tipo de violência”, alertou.
Parlamentares do campo conservador também não saem ilesas. “Isso ficou claro no início do governo Bolsonaro, quando ele deu posse à ex-ministra Damares Alves. Nas comunidades masculinistas passaram a se referir a ela como ‘conservadia’, e reclamaram afirmando que Bolsonaro estaria se curvando ao feminismo ao trazer ela para dentro do governo”, lembrou.
Busca por soluções
Em meados de fevereiro, o Ministério dos Direitos Humanos criou um grupo de trabalho para combater o discurso de ódio e o extremismo. A iniciativa, na visão da pesquisadora, é vital para que se consiga enfrentar a violência política de gênero no Brasil. Esse combate, porém, não pode ser realizado apenas na forma da responsabilização pelo radicalismo, mas em um processo mais amplo de desradicalização de cada indivíduo.
“Construir políticas públicas e projetos de lei para punir pessoas radicalizadas não resolve a situação. Nós precisamos entender o contexto daquela pessoa, entender como ela foi radicalizada, entender sua situação social para que a gente possa combater de fato a sua radicalização pela raiz”, sugeriu Bruna. Ela também alerta que, em muitos casos, a prisão sequer é recomendável: a exposição ao meio prisional pode fomentar ainda mais o posicionamento radical e o ódio por mulheres.
Além do grupo de trabalho ministerial, a cientista aponta como outra via de combate à violência política de gênero ligada ao radicalismo político um projeto de lei elaborado em parceria entre a deputada Dandara (PT-MG) e a pesquisadora na área de gênero Valeska Zanello, da Universidade de Brasília, que criminaliza a misoginia no Brasil.
“A criminalização da misoginia pode ser uma forma muito boa de se combater. Mas não podemos esquecer de fazer o debate sobre como punir a prática da forma mais apropriada e de forma integrada com políticas públicas. Esse projeto já pode servir como ponto de partida para que se consiga investigar de forma apropriada esses casos”, defendeu.
O projeto está registrado como Projeto de Lei 873/2023, e ainda será encaminhado às comissões da Câmara dos Deputados. Já o grupo de trabalho do Ministério dos Direitos Humanos já realizou sua primeira reunião na última segunda-feira (6).