por Victor Nobre, Júlia Pereira, Rebeca Freitas, Marina Atoji, Pedro Marin e Mariana Almeida*
Em 25 de novembro de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei Complementar (LC) N° 210/2024. O texto, escrito em resposta às exigências do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino, se propõe a trazer mais transparência às emendas parlamentares (EPs) e a aprimorar os mecanismos de controle para dar maior visibilidade à sua destinação.
Ainda que parte dos problemas elencados tenham sido resolvidos, a LC apresenta diversas lacunas que fizeram com que o STF liberasse o pagamento das emendas sob ressalvas mesmo após a sua aprovação. Os efeitos sobre a área de saúde chamam particular atenção e ajudam a entender o que está em jogo nessa dinâmica de crescimento das emendas parlamentares.
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No caso das Emendas de Comissão, todos os colegiados – inclusive aqueles sem qualquer proximidade temática com a área da saúde – terão que destinar metade de seus recursos a Ações e Serviços Públicos em Saúde (ASPS). Essa disposição aumentará ainda mais a influência do Congresso sobre o orçamento discricionário federal e, especialmente, do Ministério da Saúde.
Atualmente, segundo estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), o Congresso já é responsável por alocar um volume de recursos maior do que o próprio Ministério da Saúde em gastos discricionários, isto é, aqueles gastos em que o executivo federal possui maior flexibilidade para destinação, ancorados nas principais prioridades de cada setor. Entre 2016 e 2023, o orçamento executado por meio de EPs destinadas à saúde mais que triplicou, saltando de R$6 bilhões para R$23 bilhões.
Outro estudo recente produzido pela Rede Temática de Saúde do Grupo de Institutos e Fundações Empresariais (GIFE) demonstrou que essa maior participação dos parlamentares na destinação dos recursos discricionários ao Sistema Único de Saúde (SUS) não tem produzido resultados equitativos nem contribuído para diminuir desigualdades na cobertura ou qualidade da atenção à saúde. De acordo com o relatório, quase metade da população brasileira reside em municípios com menos de 80% de cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Esses municípios receberam quatro vezes menos em emendas destinadas à Atenção Básica em comparação com os municípios com cobertura completa.
Apesar desses resultados, a participação do Congresso no orçamento da saúde pública segue crescendo e deverá aumentar ainda mais com as determinações da nova lei. Em 2024, o volume autorizado por meio de emendas parlamentares para a Atenção Básica (R$ 11 bilhões) será 74% maior que o orçamento discricionário do MS, que foi de R$ 6 bilhões. O mesmo cenário ocorre na Assistência Hospitalar e Ambulatorial, no qual os recursos das emendas são 64% superiores ao orçamento da pasta. Os recursos só em Emendas de Comissão na saúde este ano foram de R$8 bilhões.
Tal aumento dos recursos provenientes de EPs provoca um efeito de difusão e descoordenação da tomada de decisão sobre a área da saúde, problema que a LC não resolve. A forma como a nova lei determina que as Emendas de Comissão sejam operacionalizadas impede a visibilidade sobre a real autoria e destino dos recursos, além de gerar ineficiência na alocação do gasto público na saúde. O texto não proíbe a individualização dessas emendas, ou seja, elas podem acabar repartidas entre os numerosos parlamentares que compõem os colegiados – cuja rotatividade é alta – e destinadas a diferentes projetos. Não foram estabelecidos critérios claros para a destinação dos recursos.
A única forma de publicização das indicações das emendas será, como é hoje, a ata da reunião da Comissão em que elas forem aprovadas. Esse documento não identifica qual congressista fez cada indicação, abrindo margem não apenas para falta de transparência, mas eventuais ações de corrupção. A pulverização em diferentes projetos prejudica, se não inviabiliza, a identificação do real beneficiário de cada emenda.
Os recursos oriundos das EPs de Comissão deveriam ser, de forma semelhante ao que foi estabelecido para as EPs de Bancada, concentrados em projetos específicos e estruturantes, a fim de facilitar seu acompanhamento. A regulamentação até então em vigor para tais emendas (Resolução nº 1/2006 do Congresso Nacional) determinava que elas deveriam “ter caráter institucional e representar interesse nacional”.
Também no caso das emendas Pix os problemas permanecem intocados. Não foram estabelecidos critérios objetivos sobre como os recursos serão aplicados. Determinou-se apenas que fossem destinadas a obras inacabadas, mas não há definição prévia sobre as áreas temáticas a que os recursos devem ser vinculados, como saúde (por exemplo, para a construção de uma Unidade Básica de Saúde) ou educação (para construção de uma escola municipal). Essa indefinição prejudica a identificação das principais prioridades no território. Os congressistas continuam com quase nenhuma obrigação de transparência e planejamento: são obrigados apenas a indicar, de modo genérico, “o objeto” da emenda. Este fato gera diferentes implicações. Estudo realizado pela Transparência Brasil mostra que menos de 1% das emendas Pix aprovadas no Congresso têm algum grau de transparência sobre sua destinação.
Esse quadro, aliado a pequenas ou nenhuma mudança na estrutura dessa modalidade, aponta para uma tendência de perpetuação desse cenário, traduzindo na permanência da falta de transparência e de visibilidade da alocação dos recursos públicos. No caso dos beneficiários, o texto deixou de incorporar a obrigatoriedade determinada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de que eles apresentem, além da descrição do objeto em que a emenda foi usada, a estimativa de custos, previsão de prazo para conclusão e classificação orçamentária da despesa, para prestar contas da aplicação dos recursos.
A lei não traz, por fim, uma solução para a atual fragmentação e pulverização das informações sobre as emendas parlamentares, uma questão enfatizada pelo ministro Flávio Dino no início do processo que levou à aprovação do texto. A criação de um portal unificado sistematizando todas as informações relativas a emendas – desde a sua atribuição no orçamento até os dados de empenho e execução referentes ao beneficiário – auxiliaria no controle desses recursos em maior escala, garantindo maior transparência e custo-efetividade em seu monitoramento. Também é importante avançar no sentido de que os estados e municípios incluam em seus portais de transparência informações mais qualificadas e detalhadas sobre os recursos recebidos via emendas parlamentares, criando em suas estruturas orçamentárias codificação de fontes específicas para os diferentes tipos, que permitam a rastreabilidade completa dos recursos repassados, processo que também depende desses entes.
Sem procedimentos bem definidos e mecanismos sólidos de monitoramento e controle, acessíveis à sociedade civil de forma direta, sem depender de pedidos de informação via Lei de Acesso à Informação (LAI), as mudanças propostas pelos parlamentares e aprovadas pelo governo não trarão os resultados esperados. A ausência dessa transparência efetiva compromete a eficiência no uso dos recursos públicos, especialmente no caso das emendas parlamentares.
Embora tenham legitimidade, visto que estão ancoradas na Constituição Federal, as emendas parlamentares devem seguir as diretrizes estabelecidas constitucionalmente, isto é, contribuir para a redução das desigualdades regionais. Para isso, o foco em suas indicações têm de ser orientados por critérios objetivos visando a melhor alocação de seus recursos. Na ausência disso, e de mecanismos de transparência, isso não apenas deixa de acontecer, como o recurso público – que deveria auxiliar na melhoria de indicadores de política pública – não cumpre seu papel, desencadeando em possíveis problemas de ineficiência e de gestão sobre parcela significativa do orçamento discricionário federal.
* sobre os autores:
- Victor Nobre é assistente de Relações Institucionais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)
- Júlia Pereira é gerente de Relações Institucionais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)
- Rebeca Freitas é diretora de Relações Institucionais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)
- Marina Atoji é diretora de Programas da organização Transparência Brasil
- Pedro Marin é consultor e coordenador do Programa de Planejamento e Orçamento Público da Fundação Tide Setubal
- Mariana Almeida é diretora-executiva da Fundação Tide Setubal e professora de Orçamento Público no Insper
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