“Avesso às ideologias que cegam e asfixiam, não me desagrada imaginar que sou um animal livre” (Cineas Santos em O Aldeão Lírico, Oficina da Palavra, 2018)
Depois daquela carrada de atrocidades cometidas no governo Dilma contra a combalida economia de Pindorama vai ser difícil alguém conseguir fazer algo pior. Sem falar nos caminhões de dólares que saíram do suor dos assalariados da terra do samba, do carnaval e do futebol para financiar obras em Moçambique, Angola, Venezuela, Cuba e na ponte que caiu.
Portanto, a não ser que Guedes e sua trupe alterem os fundamentos estruturantes da economia tupiniquim, não devem ocorrer grandes abalos nessa área. E é até possível que a nova equipe econômica consiga avanços expressivos, tamanho foi o rombo, cuja profundidade só não é maior graças às providências adotadas no governo Temer.
Aliás, o governo Temer tem sido avaliado mais pelas falcatruas em que o titular se meteu do que por conquistas como o controle da inflação. Se o país recupera aos poucos o ritmo do emprego é por conta das medidas adotadas por aquele, e não pelo atual governo, que ainda nem esquentou as cadeiras. Insisto: Temer não é flor que se cheire. Mas obteve avanços, sim. E é bom que comecemos a cultivar o hábito de reconhecer os acertos, mesmo de quem discordamos.
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Embora os líderes do novo governo repitam de pés juntos que não vão se pautar por questões ideológicas, é a ideologia ultradireitista deles que está levando à revisão das parcerias comerciais, privilegiando os Estados Unidos e anunciando restrições à China e a outros países de matriz ideológica socialista. E isso é perigoso.
Pragmatismo econômico, recomendam os analistas de agora e de sempre, é o melhor caminho para qualquer país. Porém, até aqui, o que se viu foi a troca de um extremo pelo outro. Praza aos céus que as mudanças que vierem resultem em mais empregos e mais produção em Vera Cruz.
Devo ser um bolsominion, né?
Mas o quadro econômico pode ser bem melhor, sim, se forem cumpridas as promessas de enxugamento do Estado, redução do cipoal burocrático, combate duro e diuturno à corrupção, esforços contra o desperdício e privatizações, claro, desde que seletivas e não lesivas ao funcionamento da máquina pública. Só por essas afirmações os esquerdofrênicos vão começar a me chamar de bolsominion. Apressadinhos.
Já-já vão mudar o rumo da prosa e me chamar de “epíteto-comunista”, seja lá que diabo isso seja, título com o qual já fui brindado por um dos infiéis leitores destas mal-traçadas.
É a agenda de costumes, estúpido!
O risco do governo Bolsonaro não está na economia, ponto nevrálgico de qualquer administração. Mas na agenda dos costumes, a agenda dos direitos individuais e das minorias. Porque podem vir por aí violações a princípios basilares como a laicidade do estado e a conquistas como a união civil de pessoas do mesmo sexo, pesquisas com células-tronco, liberdade de cátedra, direitos dos homossexuais, equidade de gênero, essas coisas.
Esse povo que chegou aí morre de medo, por exemplo, de que os professores epíteto-comunistas convertam os estudantes em marxistas comedores de criancinhas, por isso defendem a tal da escola sem partido. Bobinhos. Aprendam de uma vez: professores têm mais o que fazer. Como educar os filhos de vocês, sabiam?
A partir daqui, vou esquerdizando a prosa
Crescimento econômico a qualquer custo significa risco de colapso ambiental (Mariana e Brumadinho estão aí) e elevação de desigualdades sociais (ocupação de terras indígenas ou áreas de quilombolas, por exemplo). E aí está o problema mais sério representado pelo atual governo, refém do apoio recebido do setor ruralista e dos capitães do grande capital.
Esses setores, pela sua natureza, são adeptos do relaxamento de regras ambientais, porta aberta para acidentes graves como os que acabamos de assistir. E do afrouxamento de direitos trabalhistas, e dos indígenas e quilombolas, porque estão de olho nas áreas deles.
Quando o governo ameaça (mesmo que depois desameace) a saída do Brasil do Acordo de Paris, num estágio em que o planetinha azul já sofre as consequências do aquecimento global (esse tufão que arrasou o Rio outro dia é produto mesmo do quê, hein?), é o caso de pôr as barbas de molho.
Quando Bozo trata moradores de quilombos como se fossem bichos brutos – e é bom lembrar que até os bichos são protegidos por uma Lei de Proteção aos Animais –, avaliando seu peso em arrobas, é pra se revoltar. Tanto quanto merece repúdio o tratamento que dispensa às mulheres, negros e outros segmentos vítimas da violência e descaso ao longo da história.
Ou quando se orgulha de ter votado contra os direitos das empregadas domésticas. Bom lembrar que até hoje o capitão não se retratou de nenhuma dessas infâmias.
Pronto: já não sou uma coisa nem outra
Pois é. Acabei de frustrar tanto os que achavam que sou mais um bolsominion reaça como os que pensavam que não passo de um epíteto-comunista lulista. Afinal, vão me rotular do quê?
Nem de uma coisa nem de outra, meninos.
É que pensar pela própria cabeça, como “um animal livre”, como o professor Cineas Santos afirma na epígrafe deste artigo, compensa, sim. Tudo bem que a gente apanha de todos os lados. Mas é a única forma de garantir coerência, um produto em falta ultimamente. E, assim, preservar a própria liberdade.
Suspeito que vou continuar apanhando. Fazer o quê? Ainda bem que lombo de nordestino é duro e o couro é grosso. Aguenta o tranco.
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