O conjunto de desigualdades estruturantes é a principal barreira para o acesso à saúde e, se os governos continuarem a ignorar essa evidência, além de não conseguirmos superar as novas pandemias, vamos retroceder nos esforços para controlar os principais problemas da saúde pública, como por exemplo, nos mostra a pandemia de HIV/Aids, que já dura mais de quatro décadas.
O alarme foi soado esta semana pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) em relatório lançado esta semana com dados que evidenciam a necessidade de ações governamentais e multilaterais urgentes para combater desigualdades que são determinantes para a Aids.
O Relatório Global sobre Aids 2022 (Unaids Global Aids Update 2022) mostra que o número de novas infecções caiu apenas 3,6% entre 2020 e 2021, o que representa o menor declínio anual desde 2016. Como resultado, cerca de 1,5 milhão de pessoas se infectaram só no último ano – 1 milhão a mais do que as metas estabelecidas pelos estados membros das Nações Unidas – em decorrência do aumento das desigualdades (dentro e entre os países) e também pela covid-19, que paralisaram ou abalaram fortemente a atenção ao HIV/Aids em praticamente todos os países.
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É muito grave que o HIV tenha avançado justo onde a violência cresceu, afetando desproporcionalmente mulheres jovens e meninas adolescentes, com uma nova infecção ocorrendo a cada dois minutos em 2021. Além da interrupção do tratamento e serviços de prevenção ao HIV/Aids, com milhões de meninas fora das escolas, os índices de novas infecções acompanharam os picos de gravidez na adolescência e aumento dos casos de violência sexual e de gênero.
Além disso, os dados do novo Relatório evidenciam o progresso insuficiente na revogação de leis punitivas que aumentam os riscos de infecção por HIV e das mortes de pessoas que fazem parte de grupos em maior vulnerabilidade, incluindo aqui as populações LGBTQIA+, pessoas que usam drogas injetáveis e profissionais do sexo.
É realmente impactante ler o Relatório, sobretudo quando se sabe que a ciência avançou tanto, a ponto de ser capaz de tratar o HIV ou preveni-lo, via métodos com mais de 95% de eficácia, além das ferramentas disponíveis para detectar e tratar infecções oportunistas.
Ainda assim, saber que em 2021 a Aids nos tirou mais 650 mil vidas e que praticamente um terço das 35 milhões de pessoas vivendo com HIV/Aids em todo o mundo não tem acesso ao tratamento, é um retrocesso inaceitável, cuja reversão precisamos cobrar com mais veemência das autoridades pertinentes. Apesar de toda tecnologia disponível, o número de pessoas em tratamento caiu mais em 2021 do que em uma década e apenas 52% das crianças que vivem com HIV/Aids estão sendo tratadas, o que mostra uma maior lacuna na cobertura terapêutica entre crianças e adultos.
Igualmente preocupante são as perspectivas regionais. A Unaids demonstra que as novas infecções estão aumentando onde, antes, estavam caindo. A Europa Oriental, a Ásia Central, o Oriente Médio, o Norte da África e a América Latina (incluindo o Brasil) têm visto aumentos significativos nas infecções anuais, enquanto as respostas ao HIV/Aids sofrem maiores ameaças pelo aumento da fome, da pobreza e das guerras, por menos investimentos e porque, na maioria dos países enfrentar a Aids saiu da pauta de prioridades.
A falta de recursos públicos investidos foi crucial para que chegássemos ao ponto em que estamos hoje. Nos últimos dois anos, os pagamentos da dívida dos países mais pobres do mundo atingiram 171% de todos os seus gastos em saúde, educação e proteção social combinados, asfixiando a capacidade dos Estados em empreender respostas eficazes ao HIV/Aids e reduzindo o financiamento das iniciativas da sociedade civil em países de baixa e média renda durante este período.
No Brasil, sofremos diretamente com as políticas irracionais e inefetivas de ajuste fiscal, como a Emenda Constitucional 95, que erodiu nosso orçamento nos setores acima mencionados. Isso, aliado ao negacionismo do atual governo federal, abalou a política de prevenção ao HIV no país. Por exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS), em 2020 distribuiu 15 milhões de preservativos a menos na comparação com 2019; já em 2021, o governo Bolsonaro investiu apenas R$ 100.098,00 (cem mil e noventa e oito reais) em campanhas de prevenção, o equivalente a 0,6% dos R$ 16,5 milhões anualmente usados até 2018 – como indicou a VI edição do Relatório Luz da Sociedade Civil para a Agenda 2030.
Com quarenta anos de experiência enfrentando o HIV e desenvolvendo estratégias integradas para fortalecimento dos sistemas públicos de saúde, é impressionante ver que toda a expertise que acumulamos segue sendo ignorada. Já sabemos que lidar com pandemias e crises (sejam elas políticas, climáticas ou sanitárias) exige atuar com base nas evidências, fortalecer serviços comunitários e colocar as pessoas afetadas no centro do debate, pois é lá onde se identificam as capacidades de resposta mais efetivas que, por sua vez, são aquelas baseadas em direitos.
Por isso, nesse momento em que o Brasil, que um dia mostrou ao mundo a melhor resposta ao HIV e Aids, hoje lidera os maiores retrocessos junto à comunidade internacional. Esses retrocessos nacionais são aqueles que nos doem mais. Uma dor, porém, que não nos paralisa; ao contrário, fortalece nossa incidência por mais investimentos nas organizações da sociedade civil, na defesa dos direitos humanos de todas as pessoas, pelo fim do estigma e do preconceito, do racismo e das desigualdades, inclusive as de gênero, e, a curto prazo, pelo financiamento adequado da saúde, com garantia de proteção social para todas e todos.
Saber o que precisa ser feito para vencer a Aids e acabar com as desigualdades e não fazê-lo é um crime contra a humanidade perpetrado pelos atuais tomadores de decisão. E é disso que trata este relatório lançado pela Unaids.
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