Auxiliar jurídico da CPI da Covid-19 e coautor do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff,o professor Miguel Reale Júnior acredita que o presidente Jair Bolsonaro foi orientado por algum jurista ao defender o tratamento precoce em seu discurso na Assembleia da ONU nesta terça-feira (21). Para Reale, no entanto, a estratégia pode surtir efeito contrário ao esperado.
Na avaliação do jurista, ao defender o uso de medicamentos ineficazes contra a covid-19 na ONU, Bolsonaro confessou os crimes pelos quais é investigado na CPI do Senado. “Era uma confissão. Ele confessa que usava cloroquina, que mandava cloroquina e ainda vai ao púlpito da ONU fazer campanha da cloroquina. Reforça o crime catalogado na nossa legislação como charlatanismo”, disse Reale ao Congresso em Foco.
O jurista entende que Bolsonaro usou a defesa do tratamento precoce no discurso em Nova York na tentativa de se defender previamente em futuros processos: seja em ações políticas diante do Congresso, seja em processos penais diante do Judiciário.
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“Ingenuamente, ele tenta manter o mesmo discurso e a defender seus atos como uma antecipação da defesa em um processo de impeachment”, explica o jurista. Na avaliação de Reale, Bolsonaro procurou mostrar na ONU que estava convencido de que combatia a pandemia da melhor forma possível. “O que ele quer mostrar é que não agiu com dolo, porque estava convicto de que a cloroquina fazia bem, e pergunta como que os outros países não a aceitam”.
Para o especialista em direito penal, a tática adotada pelo presidente pode não gerar o resultado esperado em futuros processos. “É uma tática ingênua, porque a cloroquina tinha recebido a reprovação, por exemplo, do conselho de medicina da França, da Organização Mundial da Saúde, e também da Organização Panamericana de Saúde, bem como de todos os cientistas brasileiros que vieram aos meios de comunicação alertar para esse risco. Ele insiste em defender pontos indefensáveis, se preparando para dizer que agiu de boa-fé”, afirma.
Reflexo da política interna
PublicidadeAlém de correr o risco de ter seu discurso visto no Congresso como uma forma de se autoincriminar, o jurista considera que a fala de Bolsonaro ainda pode trazer complicações para o presidente caso ele venha a responder futuramente no Tribunal Penal Internacional, em Haia. Reale e um grupo de juristas entregaram parecer à CPI semana passada em que defende, entre outras coisas, que Bolsonaro seja investigado pelo tribunal internacional por crimes contra a humanidade. “Acredito que ele deva responder por conta de crime contra a humanidade, conforme o artigo 7º do Estatuto de Roma”, defende.
Esforço eleitoral
Quem também avaliou o discurso de Bolsonaro foi a jurista Helena Lobo da Costa. Apesar de não enxergar o pronunciamento do presidente como uma forma de autoincriminação ou de defesa prévia, ela concorda com Reale quanto aos objetivos eleitorais do discurso. “Foi um discurso voltado aos seus próprios eleitores, pessoas que ainda acreditam naquilo que ele fala. Ele falou de Sete de Setembro, desmatamento, muita coisa que não tem a ver com a CPI. Mas ele continua insistindo nas práticas equivocadas”, explica a jurista, coautora do parecer entregue à comissão.
Para Miguel Reale, os interesses eleitorais de Bolsonaro ao falar na ONU se manifestam até mesmo ao tratar de assuntos econômicos. “Ele não acredita no que defende. Ele estava fazendo o que lhe era conveniente para tentar amenizar danos eleitorais”.
Helena da Costa ainda alerta para os riscos que a postura do presidente cria para a imagem do Brasil no exterior. “A insistência dele em levar esse discurso para um ambiente onde ele sabia que não iria receber nenhuma adesão coloca o Brasil em uma posição inclusive vexatória diante da comunidade internacional”.
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